Cartão vermelho à Fifa

João Paulo CunhaJoão Paulo Cunha

João Paulo CunhaO escândalo da Fifa não surpreendeu ninguém. Infelizmente, é o tipo de notícia que todo mundo já sabia: a entidade corrompe, rouba, cobra propina, vende Copas do Mundo, negocia transmissões por debaixo do pano, intervém em torneios. Há décadas.

O DNA dessa sujeira tem a marca brasileira de João Havelange e Ricardo Teixeira, que fazem parte da história. Agora chegou a José Maria Marin, um filhote da ditadura, que está preso e fez o atual presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, sair da Suíça correndo como um centroavante em dia de decisão.

Reportagens de Andrew Jennings, que deram origem ao livro Jogo sujo – O mundo secreto da Fifa, dão conta da estrutura criminosamente profissional da federação. O jornalista revelou ao mundo as negociatas em torno da Copa do Brasil, a subserviência aos interesses da entidade por governos de vários países e, para vergonha de grande parte do jornalismo brasileiro, expôs os vínculos sórdidos de José Maria Marin com a morte sob tortura de Vladimir Herzog nos porões do regime militar.

A Máfia do futebol, sediada na impávida Suíça, sempre frouxa com lavagem de dinheiro, foi sacudida pela investigação do FBI. Como o dinheiro sujo passou pelos Estados Unidos, a máquina policial e judiciária americana foi posta em ação. A conversa agora é outra. Não se trata apenas de chegar aos cabeças, com o todo-poderoso Sepp Blatter na ponta, mas de percorrer o intrincado caminho da corrupção.

A partida começou bem. Entraram no campo da investigação cartolas, empresas de marketing esportivo, patrocinadores poderosos, emissoras de televisão e até governos nacionais. A princípio todos querem se esquivar da lama, como se tudo fosse sempre responsabilidade de uma minoria perniciosa.

Mas será possível separar do esquema fraudulento empresas que, por dezenas de anos, acompanham pomposamente todos os passos da Fifa como patrocinadoras oficiais de torneios em todos os cantos do mundo? Dá para acreditar que o chamado “ambiente de negócios”, como se referiu o Jornal Nacional, esteja preservado de uma lógica fundada no suborno e na prevaricação?

O “garganta profunda” da história, o réu confesso J. Hawilla, dono da poderosa Traffic, um dos gigantes do marketing esportivo, é nada menos que parceiro privilegiado da Rede Globo, que desde os anos 1970 dá as cartas na transmissão dos torneios chancelados pela Fifa – da Copa do Mundo ao Brasileirão.

Hawilla tem cacife: administra passes de vários jogadores, esteve envolvido no contestado acordo da Seleção Brasileira com a Nike (que gerou uma CPI que deu em pizza), foi responsável pela venda dos camarotes do novo estádio do Palmeiras e era detentor de exclusividade na venda dos direitos internacionais de transmissão da Copa de 2014, entre outros filés.

E não para por aí. Em 2003, Hawilla fundou a TV TEM (Traffic Entertainment and Marketing), cadeia de afiliadas da Rede Globo no interior de São Paulo que cobre 49% do estado, com 318 municípios e quase 8 milhões de habitantes. Entre as cidades que recebem seu sinal estão São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Jundiaí. A sociedade entre a família Marinho e Hawilla chega também a jornais impressos da região e da capital.

História mal contada, a gente vê por aqui.

Como numa partida de futebol, o jogo tem dois tempos. O primeiro é o megaesquema de corrupção, com tentáculos nos cinco continentes. A investigação e as prisões podem ser o começo do fim desse consórcio criminoso. A anunciada CPI da CBF é uma boa notícia, principalmente se tiver coragem de ir até as últimas consequências e não deixar ninguém de fora, sobretudo os sempre intocados meios de comunicação. Abrir a caixa-preta da negociação de transmissões, envolvendo dirigentes, emissoras e clubes é a senha para que a CPI tenha resultados práticos.

O segundo tempo, no entanto, é menos material. Trata-se do risco de se enterrar um modo de ser brasileiro em nome dos interesses podres. O nosso futebol, hoje, tem as marcas doentias dessa história. Os jogos são depois da novela. Os estádios se tornaram arenas divididas em classes. Um time vitorioso numa temporada é desmontado na outra pelo interesse de empresários. A imprensa perdeu a objetividade e virou um show de vaidades. Os atletas são um misto de metrossexuais, bandidos e carolas – não são bom exemplo nem de profissionais nem de cidadãos. Os brasileirinhos estão torcendo para o Barça e Real Madrid e fazem escolinha de futebol em vez de jogar pelada. Os campos de várzea foram perdidos para a especulação imobiliária.

Não se trata de saudosismo, mas de um desmonte que pode matar a relação afetiva com o esporte. Por enquanto, a paixão pelos clubes está segurando a onda. Mas quando um simples torcedor precisa virar sócio-torcedor para ser reconhecido por seu time, a emoção do jogo começa a ir para escanteio. Tão grave quanto a roubalheira da Fifa é o sequestro da alegria.

 

*João Paulo Cunha é jornalista

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