Erguer novas trincheiras de ideias

Rita CoitinhoRita Coitinho *
 

Rita CoitinhoNo Brasil do século 20 construíram-se algumas trincheiras que resultaram, apesar de uma sociabilidade fortemente embasada na violência, em direitos civis e instituições democráticas bastante avançadas.

A redemocratização do final da década de 1980 parecia ter varrido para sempre as tendências golpistas e autoritárias de certos setores das elites nacionais e, nos 12 anos de governos progressistas, iniciados como Governo Lula em 2003, consolidaram-se espaços institucionais com o objetivo de dar voz às parcelas mais oprimidas, como mulheres, jovens e afrodescendentes.

Os mesmos “ventos” progressistas sopraram também na maioria dos países do continente latino-americano, levando-nos a acreditar que se iniciava uma nova etapa histórica. Até recentemente ousaríamos dizer que essas conquistas eram definitivas e, daqui em diante, não seria mais possível retroceder.

Porém a dialética histórica, essa velha senhora cheia de caprichos, não segue um caminho retilíneo. Avançamos muito até aqui, porém absolutamente nada nos garante que não podemos voltar atrás. A ideia hegeliana do “caminho do espírito”, que remete a uma caminhada civilizatória cujo desenho seria o de uma espiral (saltos, ao invés de um percurso retilíneo como propõem as teorias evolucionistas) talvez seja a melhor ilustração do que quero dizer aqui: avançamos, é certo, mas a caminhada não é – nem poderia ser, pois trata-se de história – sem percalços ou recuos.

Na mesma proporção em que milhões de pessoas passaram a ter acesso a bens e direitos, outros muitos passaram a se sentir incomodados. E setores profundamente reacionários, que se contentavam em justificar o insucesso das massas por “preguiça” ou “falta de espírito empreendedor” viram-se momentaneamente perdendo a guerra ideológica.

Ajudados pelo monopólio reacionário dos meios de comunicação e pelas novas tecnologias de difusão da informação esses setores reorganizam-se e passaram a disputar abertamente o jogo político, fazendo agora um barulho danado. Além disso, como os governos do Equador, da Bolívia e da Venezuela vêm reiteradamente denunciando, há o envolvimento descarado das embaixadas norte-americanas no financiamento e treinamento de ONGs e lideranças de “revoltados” com as conquistas sociais dos governos progressistas que vêm mudando as feições do continente latino-americano há cerca de uma década. Suspeita-se, ainda, da forte influência da CIA no crescimento exponencial das igrejas ultrarreacionárias de orientação mercantil, também conhecidas por “neopentecostais” que hoje movimentam amplos setores da sociedade em busca da salvação após a morte – vendida, literalmente, em cultos que fazem amplo uso de recursos de dramatização e técnicas de indução da histeria coletiva, ao mesmo tempo em que aliam-se ao tráfico para expulsar as lideranças populares e praticantes de cultos de raiz afro das comunidades.

Há quem duvide dessa influência externa; a esses recomendo o estudo dos acontecimentos dos últimos anos no Oriente Médio, onde países relativamente estáveis em que conviviam povos e religiões diversas (como o Líbano e a Síria) foram jogados em conflitos internos fratricidas por motivos religiosos. Em todos esses casos o envolvimento da CIA e da indústria armamentista (será uma tautologia citá-los separadamente?) é amplamente citado.

Será a escalada conservadora um movimento irreversível contra o qual é inútil lutar, como parece ser a opção do Palácio do Planalto, mudo há quase seis meses? Ou será que, tal qual o avanço, também o retrocesso não é inexorável? Ao mesmo tempo em que assistimos, estupefatos, o protagonismo dos setores conservadores que atuam no Congresso Nacional, setores da sociedade, até então em silencio, começam a se expressar, seja por meio de setores da própria imprensa monopolista – setores “iluministas” da burguesia brasileira – seja por meio de manifestações contra a intolerância religiosa, tal como a que ocorreu nesse final de semana no Rio de Janeiro.

Os avanços conquistados nos últimos anos foram demasiadamente significativos para que o povo abra mão de tudo sem reação. Há uma dialética do processo histórico que não pode ser desconsiderada e é com os olhos postos nela que se deve articular a ação da esquerda e dos setores mais progressistas.

Para isso é preciso definir novas trincheiras da luta de ideias – bandeiras de luta amplas o suficiente para atrair a adesão dessa parcela da população que não coaduna com as ideias ultrarreacionárias mas que, decepcionada com o governo ou impactada pelos escândalos midiáticos de corrupção, tem feito coro (ou apenas tolerado) com esses grupos que flertam com o fascismo.

A defesa do Estado Laico e do respeito a todas as manifestações religiosas (e o respeito a quem não professa nenhuma religião) é uma dessas bandeiras amplas, por onde podemos obter também vitórias relativas ao combate ao racismo, aos direitos reprodutivos e à diversidade.

A questão do financiamento empresarial de campanha, que já está nas ruas e nas redes, é também peça fundamental dessa “virada de jogo”, assim como o respeito à soberania dos Estados vizinhos, princípio que a direita brasileira vem desrespeitando reiteradamente em seu alinhamento completo à política de Washington para a América Latina. É preciso denunciar os planos por trás do apoio de parlamentares brasileiros aos agitadores fascistas da Venezuela, da Argentina, do Equador e da Bolívia.

É preciso, por fim, impor ao governo Dilma uma virada de jogo. A crise econômica não será resolvida pelo ajuste fiscal, cujo único sentido é preservar os lucros dos rentistas internacionais. Os ajustes econômicos praticados nas últimas décadas só têm tido como resultado o desemprego e a queda da renda nacional – Espanha, Grécia e Portugal estão aí para nos dizer, caso estejamos com preguiça de relembrar a década neoliberal da América Latina. O que levou Dilma à reeleição foi uma intensa mobilização popular e essa disposição de luta poderia ter lhe dado sustentação necessária ao enfrentamento das imposições do capital financeiro internacional.

Talvez ainda haja tempo para um novo salto no espiral histórico se formos capazes de reconhecer nossos erros e reorientar nossa ação, espelhados no ensinamento de Lênin que, ao dirigir-se aos seus camaradas no 11º congresso do seu partido, disse que “todos os partidos revolucionários que pereceram até o momento tiveram essa sorte por ter caído na armadilha da presunção, por não saber de onde vinha sua força e por temer falar de suas debilidades”. Cabe aos movimentos progressistas e às organizações de esquerda a decisão de organizar a retomada dessa caminhada ou abrir mão dela, abrindo o caminho para o retrocesso.

 

* Rita Coitinho  é Socióloga

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