Belchior completou 70 anos de idade sem ninguém saber o ‘paradeiro’ do artista

Belchior chegou nesta quarta, 26, aos 70 anos. Mas se algum fã desavisado tem intenção em desejar parabéns pessoalmente para o artista, é melhor esquecer. Belchior ainda continua fora de circulação e com paradeiro desconhecido. O sumiço dele foi muito explorado na mídia nesses últimos tempos. Resumindo uma história complicada: devido à suposta influência de uma namorada, o artista teria desistido de tudo, incluindo família e carreira. Com isto, teria deixado um rastro de dívidas, alugueis atrasados, pendências trabalhistas e pensões alimentícia não pagas. Os entraves pessoais e legais de Belchior já duram cerca de uma década e pelo jeito ainda vão render muito.

Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes nasceu no dia 26 de outubro de 1946, em Sobral, Ceará. Na década de 1970, houve a chamada “invasão nordestina”, com diversos artistas daquela região do país buscando um lugar ao sol no mercado nacional. O ex-estudante de medicina Belchior fez parte da “invasão cearense”, ao lado de contemporâneos como Raimundo Fagner, Ednardo, Amelinha e outros. Mas para se tornarem conhecidos, precisaram de uma pequena ajuda. Em 1972, Elis Regina gravou “Mucuripi”, de Fagner e Belchior. A exposição beneficiou primeiro o parceiro dele na canção. Belchior ainda levaria um tempo para se destacar.

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Ao completar sete décadas de vida, Belchior segue como um enigma

E foi também através de Elis que Belchior se tornou conhecido. Em 1975, a cantora interpretou “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, duas criações de Belchior, no espetáculo divisor de águas Falso Brilhante. Ela gravou as faixas em estúdio no álbum resultante do show, que saiu no ano seguinte. Com isto, Belchior se tornou um nome comentado no meio artístico. Assim ele foi convidado a gravar o segundo LP – ele tinha lançado em 1974 um álbum chamado apenas Belchior pela Continental. Hoje, o raríssimo álbum é conhecido como Mote e Glosa por causa da faixa que abre o trabalho; ele também contém pré-versões de “Palo Seco” e “Todo Sujo de Batom”. Mas o disco foi do nada ao lugar nenhum.

Só que em 1976, com Alucinação, Belchior estava no mapa. O álbum totalmente autoral lançado em março daquele ano pela Polygram foi um marco difícil de ser superado até mesmo por ele. Além de “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, ele também tinha “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “À Palo Seco” e “Fotografia 3×4”. Produzido por Marcos Mazzola, o trabalho foi gravado ao lado de músicos de rock, mas o espectro era o de MPB, ou melhor, era uma música brasileira folk como nunca tinha sido ouvida antes. Tinha influência de música nordestina e um ou outro toque regional, mas o som era urbano, e urgente. As interpretações dele para as canções que haviam sido cantadas antes por Elis eram bem diferentes, tinham um toque próprio.

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Belchior também era um astro pouco convencional: muito magro, com uma linguagem de corpo inquieta, cabelos esvoaçantes e um bigode que se tornou marca registrada. A voz dele também era difícil de ser classificada: anasalada, aparentemente anticomercial, mas bastante expressiva. Por causa do “canto-falado”, as comparações com Bob Dylan eram evidentes. Belchior não negava ou contestava isso.

O cantor tinha idade para ser considerado uma espécie de “irmão mais jovem” da geração de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros ícones. Mas a rigor, Belchior não tinha muito a ver esteticamente com aquele pessoal que veio antes. Ele não havia sido tropicalista, sambista ou seguidor da bossa nova. Ele até assimilava um pouco disso tudo, mas o samba canção (do qual a heroína dele, Elis Regina, também era discípula) era bem forte. Belchior também gostava dos Beatles e, obviamente, de música folk, o que deu lastro melódico a ele. Mas foi principalmente a mensagem temática e o conteúdo das letras que distanciaram Belchior do resto dos nomes já consagrados da MPB.

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Belchior, em Porto Alegre, com a esposa Edna, em novembro de 2012. Foto: Bruno Alencastro/ Ag. RBS/ FolhaPress

Na metade dos anos 1970, havia uma palavra que hoje está praticamente fora de moda. Era “desbunde”. Por causa do governo militar, o pais se encontrava politicamente e socialmente engessado. Já que não dava para fazer muita coisa, o jeito era se alienar, ou ir morar fora do pais, ou seja “desbundar”. Todo mundo já estava acostumado com a censura e achava que lutar era inútil. A contracultura, que chegou tarde por aqui, se resumia a um bando de moleques fumando maconha escondido em alguma cachoeira no sertão. Havia um impasse ou desinteresse geral em meio à juventude.

Quando Elis e seus colaboradores montaram Falso Brilhante, tinham intenção a de radiografar a situação do Brasil. Mas precisava ser feito com certa sutileza, sem comentários políticos explícitos. As canções de Belchior se encaixavam com perfeição no arco dramático da peça/show. Outro conceito muito difundido na época era o “choque de gerações”. Nos Estados Unidos, ele versava sobre uma geração que havia crescido com o rock nos anos 1960 e não se entendia com os mais velhos. Já estes não entendiam o que havia acontecido e tinham saudades dos tempos menos complexos. Belchior foi o arauto brasileiro do choque de gerações. Ele o fazia com aprofundamento, inteligência e um verniz literato. Como cronista de comportamento, colocava um quê de análise psicológica nas letras que elaborava.

A letra de “Como Nossos Pais” já dizia tudo. Os erros das gerações anteriores seriam repetidos pelos filhos. E isso seria uma condição eterna. A falta de perspectiva de viver em um Brasil que não crescia economicamente era refletido em “Apenas um Rapaz Latino-Americano”. Já “Velha Roupa Colorida” citava os Beatles e os Rolling Stones para sentenciar que a euforia dos anos 1960 tinha ficado irremediavelmente para trás e era hora de mudar. Ele afirmava que “o que era novo, jovem, hoje é antigo” e falava “precisamos todos rejuvenescer”, mas não apontava como e quando isto seria feito.

O incrível é que o desencanto de Belchior se tornou algo comercialmente viável. Alucinação vendeu mais de 500 mil cópias e ele virou um ídolo de massa, cumprindo todo o ritual de aparecer com frequência na televisão, excursionar exaustivamente por todo o Brasil, etc. Mas depois de Alucinação, Belchior saiu da Polygram e assinou com a Warner. Lá, gravou outros grandes álbuns como Coração Selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978) e Era uma Vez um Homem e Seu Tempo (1979). Teve outros hits como “Medo de Avião”, “Comentário A Respeito De John”, “Todo Sujo de Batom”, “Paralelas” e “Galos, Noites e Quintais”.

Mas conforme a década de 1980 foi avançando, ele foi perdendo espaço. A obra ficou menos densa e menos tópica. O som se tornou pausterizado, uma praga que atingiu naquela época quase todos os ícones da música brasileira. Ele também já estava cansado de “problematizar”. Como ele mesmo havia previsto, uma nova geração surgia e ele, Belchior, era quem agora ficava para trás. Ele ainda tinha um público fiel, mas os dias de grandeza artística e comercial haviam ficado para trás.

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O cantor tinha idade para ser considerado uma espécie de “irmão mais jovem” da geração de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros ícones/Foto: Gustavo Pellizzon/ Diário do Nordest

Ao completar sete décadas de vida, Belchior segue como um enigma. Antes de sumir, apesar de sempre agir como um cavalheiro, ele se mostrava um tanto arredio e desconfortável com a fama. Ele também nunca foi afeito a panelinhas. Em 2014, ganhou um disco tributo chamado Ainda Somos os Mesmos, com artistas independentes interpretando as músicas dele. Mas nem isso garantiu que ele fosse devidamente “redescoberto”. Tirando as gravações feitas por Elis nos anos 1970, Belchior ainda é o melhor intérprete dele mesmo. Talvez porque a obra dele seja muito pessoal e singular. Os mais jovens no geral não conhecem quase nada de Belchior – talvez “À Palo Seco”, isso porque foi regravada pelos Los Hermanos.

Neste momento, a Universal lança a caixa Três Tons de Belchior, contendo reedições em CD de três álbuns do cantor. Um deles é o lendário Alucinação, que estava fora de catálogo em CD há um bom tempo. A nova edição reproduz, no tamanho reduzido do CD, o encarte do LP original de 1976. O som foi remasterizado. A caixa é completada por Melodrama (1987) e Elogio da Loucura (1988), ambos até então inéditos no formato digital.

O fato é que hoje a profecia se cumpriu. No momento, Belchior não é nada além de um rapaz (bem, nem tão rapaz) latino-americano. E a julgar pelos fatos recentes, sem nenhum dinheiro no banco.

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