Amanhã quero ser vento

Brasil de Fato - Créditos: Reprodução“Tempo me disse

que só com tempo

a gente chega lá…”

Roberto Ribeiro – Tempo Ê

Sem dúvida a retrospectiva de 2016 é das piores possíveis nos últimos tempos. Apesar de alguns adiantos consideráveis, onde frentes de intelectualidade e resistência contestaram fortemente as questões políticas, sociais, raciais, educacionais e de gênero, os retrocessos deram respostas injustas e sangrentas, revelando que o pior ainda virá.

Pelo jeito as lágrimas serão enxurradas e as grades e os caixões gélidos do nosso cotidiano devem aumentar na quantidade do leite derramado. Meu sentimento, e das pessoas que converso, prevê em um futuro sem futuro, uma seca sem dó, e pra evitar o abismo das mazelas me concentro em recordar as horas de angústia e placar adverso que emanaram nossas reinvenções.

Nas quebradas, a boca pequena e na fala dos mais antigos, muitos acreditam num clima menos violento, com menos assassinatos, principalmente comparando aos anos 80 e 90, onde cadáver coberto com jornal era capim em beira de córrego. Há quem diga que o início dos anos 2000 foram dias de redenção, mas temo que o cartão de crédito e a pança forrada, no mesmo período, relativizem os atrasos servidos de sobremesa. É o perigo do “panis et circenses”, onde na muquia de cada sorriso habita um desengano.

Sem dúvida, as anunciações e revides dos últimos anos resistiram às invisibilidades, violências e genocídios criando forças de representação e encruzilhadas. Além do embate político e ideológico, surgiram propostas estéticas de quem, em parte, faz a locução dessas vozes. Falo aqui de literatura, música, artes visuais, dança, moda e outras linguagens que desafiam e subvertem os signos, discursos e as metáforas viciadas da hegemonia.

O funk de favela, passando pela arte preta e de quebrada, as expressões feministas, LGBT´s e as ocupações estudantis ecoam em dissonância, colidem até mesmo entre si, revelando fortalezas e contradições, mas se deparam com covardes facadas que alargam nossas feridas em escala maior. São golpes de estado, nas urnas e nas investigações, estupros, abusos, chacinas diárias e o sucateamento escolar, cruéis e escancarados.

Não quero aqui contar os fatos, defender ações, fórmulas, tampouco pontuar o que a história regou. Essas paradas já sabemos e temos exemplos pra conferir e reagir, mas confio que alguma demanda virá a favor nesse lodo e esse enigma habita nas reinvenções que toda pressão e extermínio revelam em nossos caminhos, pois nas fases mais azedas da nossa história surgiram o fundamento dos quilombos, terreiros, capoeiragem, samba, imprensa negra, bailes, movimentos, hip-hop e saraus; cada qual com sua importância e proporção, deixando legados de referência e luta, permitindo o simples ato de ler esse texto ou garantindo a vida de muitos quintais ancestrais.

Toda fonte-fértil carece de boas águas, da compreensão dos lamentos, do cuidado com o abismo do “onde foi que erramos?” e do dedo apontado na janela do vizinho. O silêncio me aconselhou a ter desconfiança da soberba pegajosa dos meus saberes e da crença que a chacota do negativo há de evitar o pior, me convenceu que desprezar feridas é cultivar autonomias de poeira, onde qualquer palavra vira lugar-comum e o aprendizado maior é ser vento, chuva e semear futuros dentro si.

Michel Yakini é escritor e produtor cultural.

www.michelyakini.com

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Amanhã quero ser vento