Quem define os limites da sala de aula?

“Stalin matou pouco” era a inscrição na parede da sala do professor de Filosofia Rodrigo Jungmann, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Conhecido por ser crítico da narrativa esquerdista produzida nas universidades brasileiras, o professor foi especialmente atacado por alunos após invasão e depredação das instalações da UFPE. As opiniões políticas emitidas por ele durante seus cursos geraram insatisfação e alimentaram o ódio que explodiu com essa frase dantesca na parede da sala em que trabalha.

Em outro episódio recente, a opinião de um professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Rondônia, emitida e gravada por aluna durante sua aula, ensejou artigo no jornal O Globo. Nele, André Cyrino, professor-adjunto da Faculdade de Direito da Uerj, ameaça com “responsabilização civil, administrativa e até mesmo criminal” os docentes que incorrerem no que se denominou “preconceito de gênero e de orientação sexual com o intuito exclusivo de depreciar”.

Noves fora a dificuldade invencível de julgar a intenção de qualquer indivíduo para saber se o que diz ou faz tem um “intuito exclusivo de depreciar”, a problemática levantada é muito espinhosa. A questão é que o ambiente acadêmico tem seus próprios mecanismos de controle. As diversas provas de qualificação a que se submetem os professores, em conjunto com o permanente diálogo proporcionado pela comunidade acadêmica respectiva, são robustos mecanismos para peneirar os incompetentes, os desequilibrados e os mal-intencionados. Assim, qualquer malabarismo retórico que pretenda avançar punições juridicistas baseadas em outros critérios que não os desenvolvidos pela própria academia só levam à pergunta óbvia: se a sala de aula tem limites, quem define e aplica os limites da hora presente? Quem decide que opiniões “com o intuito exclusivo de depreciar” geram sanções até criminais e quais frases com o intuito explícito de intimidar não são importantes?

O articulista tratou muito rapidamente do assunto, como se óbvio fosse. Ora, a história da ciência mostra que uma visão simplista assim não encontra apoio nos fatos. Um exemplo é o caso Galileu, mal citado pelo articulista. Galileu não teve sua pesquisa astronômica impedida pela Igreja Católica, nem Giordano Bruno morreu em razão de suas afirmações científicas. Antes, foi justamente a intromissão de disputas extracientíficas que tentou calar Galileu e efetivamente calou Giordano Bruno. Sem perceber, o que se pretende é estabelecer um tribunal extracientífico para julgar a doutrina de acadêmicos em suas aulas. Se pudéssemos retroceder no tempo e aplicar esse argumento ao caso Giordano Bruno, talvez tivéssemos de absolver quem o condenou à morte, dependendo de quem julgasse e aplicasse os limites da sala de aula.

É um erro grosseiro tratar o método científico como se fosse único, neutro e desinteressado. Um olhar mais acurado revela que não é assim. Sobre a uniformidade de métodos, basta lembrar a querela entre Ernest Carnap e Karl Popper, ou toda a doutrina de Paul Feyerabend. Sobre a neutralidade do método científico, não é possível esquecer-se de Josef Mengele, acerca do pragmatismo com que praticava sua medicina na Alemanha nazista. Sobre o desinteresse, a indústria farmacológica não para de produzir vergonha após vergonha: multiplicam-se os exemplos farmacológicos para provar como a prática da ciência pode ignorar limites éticos e veicular material sabidamente pernicioso à saúde da população em nome do interesse empresarial.

Temo que esse episódio lamentável do professor de Rondônia, utilizado como boi de piranha para levantar o balão da judicialização da opinião de docentes Brasil afora, acabe provocando uma nova caça às bruxas. Ocorre que, no longo prazo, a ciência já deu provas de que suas questões internas não se decidem em tribunais ou com ações administrativas. No curto prazo, porém, os professores mais livres tomem cuidado para não serem processados e demitidos pela patrulha ideológica da hora presente. Afinal, ninguém se levantou para defender o professor Rodrigo Jungmann.

Robson de Oliveira é professor de Filosofia da PUC-RJ e membro do CTSmart.

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