Cruzeiro do Sul: beleza singular, política clientelista e desprezo por questões socioambientais

Fundada em 28 de setembro de 1904, Cruzeiro do Sul é a principal cidade do Vale do Juruá/Foto: Nataliane Freitas.

Fundada em 28 de setembro de 1904, Cruzeiro do Sul é a principal cidade do Vale do Juruá e o segundo maior município do Acre. Foi a sede do Departamento do Alto Juruá, planejada pelo coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, que foi seu fundador e o primeiro prefeito.

A região era povoada por povos indígenas divididos em vários grupos, entre eles os Katukina, Náua, Jamináwa e Huni Kui. Posteriormente, em decorrência do advento da borracha, imigrantes nordestinos chegaram à região, seguidos de desbravadores sírio-libaneses, que também estavam interessados na borracha.

Cortada por colinas que formam vales, berços de rios e lagos, a cidade, como diz o poema do cruzeirense Alberan Moraes, é o “melhor lugar pra ser feliz”. A topografia acidentada lhe confere uma beleza singular, além de ser um dos mais importantes polos turísticos do estado, cercada de construções e monumentos que simbolizam a história e a grandeza de seu povo.

A cidade possui prédios que constituem seu patrimônio histórico-cultural, destacando-se a Estação de Porto e o Colégio Santa Terezinha, em estilo colonial inglês, a Catedral com influência germânica e o Fórum em estilo neoclássico. Todos os anos, a cidade festeja o Novenário em honra à Nossa Senhora da Glória.

O desenvolvimento de Cruzeiro do Sul aconteceu paralelo ao extrativismo, notadamente durante o 1º e 2º surtos da borracha. A decadência do produto, as dificuldades de acesso à região e ausência de alternativas econômicas fizeram com que a localidade passasse por grandes dificuldades.

No entanto, a pesca, a pecuária e a agricultura de subsistência foram se firmando como alternativas, destacando-se a produção de farinha, fator que contribuiu para atenuar o crescimento populacional desordenado na cidade.

Praça Orleir Cameli totalmente revitalizada é um dos pontos de encontro dos jovens de Cruzeiro do Sul/Foto: Nataliane Freitas.

Durante mais de um século, a formação da “Princesinha do Juruá”, com seus 80 mil hospitaleiros habitantes, foi marcada por uma crescente mutação. Porém, fincou-se uma identidade, que reafirma sua autotransformação, principalmente pelo conhecimento de suas raízes caboclas, amazônidas e tipicamente juruaenses.

Finanças em frangalhos

Passados oito anos de administração do ex-prefeito Vagner Sales (PMDB), a realidade financeira de Cruzeiro do Sul não é diferente de outros municípios brasileiros. Mesmo com a crise, os últimos prefeitos incharam a máquina administrativa, ocasionando, entre outras consequências, o atraso no pagamento de alguns servidores. A realidade é dura: a prefeitura faz malabarismos para garantir a manutenção dos serviços essenciais como coleta de lixo, roçagem, capina e as operações tapa-buracos.

Segundo fontes da prefeitura, houve redução de 40% dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), diminuição da arrecadação municipal, inadimplência nos pagamento do IPTU, além do pagamento mensal de R$ 1,2 milhão ao INSS, cujo valor já fica retido na fonte dos recursos repassados.

Obras mudam a “cara” da cidade, mas não a realidade econômico-social

Com recursos provenientes de emendas parlamentares, a prefeitura executou obras de infraestrutura urbana como as reformas e reativações do Estádio Cruzeirão, das Praças Orleir Cameli e da Bandeira, do Cais do Porto e Mirante do Cais, além da construção dos Mercados do Peixe e da Carne, do Hospital do Agricultor e da Rampa de Acesso ao Novo Porto, entre outras.

No entanto, esses investimentos em nada mudaram a realidade econômico-social do município. De acordo com dados da própria prefeitura, cerca de15 mil famílias recebem o benefício do programa Bolsa Família. Calculando-se a média de três pessoas por família, somam-se exatamente 45 mil pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Mais da metade da população.

De acordo com o economista João Correia, o zoneamento ecológico-econômico do Acre aponta as potencialidades da região. “O poder público precisa investir maciçamente na agricultura. Com uma produção em alta escala, além de garantirmos a segurança alimentar da população, poderíamos instalar as agroindústrias, que formariam uma cadeia produtiva, abrangendo os três setores da economia, ou seja, agricultura, indústria e comércio”, propõe ele.
Correia critica as três esferas de poder, bem como a bancada federal acreana. A seu ver, a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) deveria investir mais no estado e na região. “A Suframa foi criada para investir na Amazônia Ocidental. Não existe localidade mais ocidental do Brasil do que o Juruá”, disse o economista, para quem os agentes políticos nada fazem para mudar a situação.

Ex-prefeito de Cruzeiro do Sul, Vagner Sales/Foto: Tribuna do Juruá

Vagner Sales reproduz a política clientelista do século passado, diz cientista político

Os últimos oito anos foram marcados pelo que há de pior em desrespeito à ética e aos princípios constitucionais que norteiam a administração pública. O executor dessa prática política absurdamente ilegal foi o ex-prefeito Vagner José Sales, um político cuja sombra reflete o que há de mais atrasado no clientelismo, nas obras eleitoreiras e arranjos políticos obscuros.

O cientista político e professor da Ufac, Nilson Euclides da Silva, ao analisar a situação calamitosa em que o município se encontra, conclui que Vagner Sales é a continuação da política oligárquica que se estabeleceu no Brasil após a proclamação da República. “Nos rincões, principalmente no Norte e Nordeste, ainda existe a figura do coronel e a política do compadrio”, disse.

O domínio político de Sales é um remake dos tempos dos coronéis de barranco, administradores plenipotenciários que mantinham vínculos de compadrio com os seringueiros. “Enquanto os coronéis das outras regiões chicoteavam alguns trabalhadores, no Juruá os patrões davam uma índia para ser a companheira de um homem isolado na floresta. Depois, os coronéis batizavam os filhos deles, tonando-se compadre, fator que estabelecia laços patriarcais”, explicou Silva.

Vereador, deputado estadual por quatro mandatos e prefeito por oito anos, Vagner Sales é um dos maiores líderes políticos da região. Autodenominando-se o “Leão do Juruá”, chegou a utilizar, na ocasião em que era deputado, a seguinte expressão: “os meus prefeitos”. A frase evidencia a ascendência que o político mantinha sobre os alcaides da região.

Nilson afirma que política do compadrio possui nova roupagem nos dias atuais/Foto: Jorge Natal

No último pleito, elegeu o seu sucessor, Ilderlei Cordeiro, indicando praticamente todo o primeiro escalão, e emplacou os prefeitos de Porto Walter, Rodrigues Alves e Marechal Thaumaturgo. Mesmo com dezenas de pendências na Justiça, o “coronel” vai disputar uma das duas vagas para o Senado em 2018 e pretende reeleger a filha, deputada federal Jéssica Sales, além de querer o retorno da mulher, Antônia Sales, à Assembleia Legislativa.

Prefeitura continua utilizando lixão nos arredores da cidade

O lixão a céu aberto de Cruzeiro do Sul, da mesma forma que o dos demais municípios acreanos, já não deveria existir. Em outubro de 2015, o Ministério Público do Estado do Acre (MP/AC) assinou recomendação para os prefeitos cumprirem, no prazo de um ano, a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico e Gestão Integrada de Resíduos Sólidos.

Mesmo sabendo que os dejetos atirados na natureza colocam em risco o lençol freático e os mananciais, utilizados pela população como fonte de lazer e para o consumo de água potável, a prefeitura continua lançando semanalmente cerca de oito toneladas de lixo. O local, alvo de constantes incêndios, fica na estrada do São José, a poucos quilômetros do centro da cidade.

Promotor Wendy Takao Hamano/Foto: Batelão do Juruá

O MP/AC já notificou os prefeitos. “Impetramos ações de improbidade administrativa contra os cinco prefeitos do Vale do Juruá”, declarou o promotor Wendy Takao Hamano, enfatizando que, entre as exigências, estão a desativação dos lixões e a construção de aterros sanitários.

Apesar da instalação muito próxima da cidade, o lixão de Cruzeiro do Sul foi projetado para ser um aterro sanitário controlado. A construção começou na administração da prefeita Zila Bezerra (2005-2008) e nunca foi concluída, nem por ela e muito menos pelos prefeitos que a sucederam. Por afrontar o Código Florestal e a Lei dos Resíduos Sólidos, a construção não teve o licenciamento ambiental liberado e a clandestinidade vigora por todos esses anos.

A assessoria de impressa da prefeitura disse que não foi possível construir o aterro sanitário. Disse ainda que apenas foram realizados estudos e que os projetos estavam em andamento, tudo em conformidade com a legislação ambiental. “O projeto está em fase de levantamento de recursos, pois é uma demanda de custo elevado”, justificou o assessor de comunicação Francisco Gomes, ressaltando que a maioria dos municípios brasileiros ainda não conseguiu resolver o problema.

Expostos ao perigo, adolescentes catam resíduos/Foto: Chico Rocha

Chorume contamina lençol freático e balneários

Enquanto os órgãos de controle ambiental não exercem o poder de polícia administrativa, o lixão coloca em risco a saúde da população. Em uma área onde o lençol freático é muito próximo da superfície do solo, o aquífero (reserva de águas subterrâneas) pode estar comprometido, uma vez que o chorume (líquido escuro que sai do lixo) não tem tratamento prévio, apontam os estudos do MP/AC.

O mesmo material poluente também escorre para um córrego que deságua no igarapé Sacado, e este desemboca no rio Juruá, afetando as populações ribeirinhas. Pesquisas ainda não concluídas do Ministério da Saúde garantem existir na região uma alta incidência de doenças como diarreia e dermatite. Agravando mais ainda a situação, caminhões que limpam fossas sépticas despejam o material, in natura, sem nenhuma medida de segurança.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos definiu os parâmetros básicos para coleta, reciclagem e destinação do lixo. Caso não cumprissem as regras, os municípios responderiam por crime ambiental, com multas que variavam de R$ 5 mil a R$ 50 milhões, além de os prefeitos responderem por improbidade administrativa.

O lixão de Cruzeiro do Sul está localizado no alto de um morro cercado por pequenos igarapés e fontes que são, em grande parte, afluentes dos famosos balneários da região – Igarapé Preto, Canhoto, Antártica e Machado. Sempre que chove, a água desce morro abaixo levando toneladas de impurezas para dentro dos igarapés.

Ex-prefeito deu “bolos” na reportagem

Na manhã do último dia 23 de dezembro, a reportagem foi informada de que o então prefeito estava conversando com munícipes no Mercado do Agricultor, no centro da cidade. Apresentamo-nos e falamos da necessidade da entrevista, que foi marcada para a manhã do dia 26, às 8 horas, na casa do prefeito, na Avenida Coronel Mâncio Lima. Ainda naquele mesmo dia, comunicamos os jornalistas Daiana Maia e Francisco Gomes da entrevista agendada.

Por mais de uma hora, esperamos o prefeito, que sequer mandou um emissário para justificar a sua ausência. Minutos depois, o encontramos em um posto de combustível e cobramos a entrevista, que foi remarcada para as 11 horas daquela mesma fatídica manhã. Fomos à prefeitura, comunicamos mais uma vez a assessoria de imprensa, mas Vagner Sales voltou a dar um bolo na reportagem.

O biólogo e professor da Ufac – Campus Floresta, Paulo Sérgio Bernade/Foto: arquivo pessoal.

Entrevista

O biólogo e professor da Ufac – Campus Floresta, Paulo Sérgio Bernade, de 44 anos, mesmo sendo natural do estado de São Paulo, já está aculturado e mimetizado à região do Vale do Juruá. Graduado em Ciências Biológicas pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), com mestrado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorado na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) em Zoologia, já publicou vários artigos sobre anfíbios e répteis e quatro livros sobre serpentes. Morador do bairro São José, ele nos concedeu esta rápida entrevista.

A cidade de Cruzeiro do Sul é poluída visual, sonora e sanitariamente. Não existem estações de tratamento de esgoto, coleta e destinação adequada do lixo, e os rios e igarapés estão sendo degradados. Como o senhor avalia essa situação?

Bernade – Vejo como uma perda inestimável de nossos recursos naturais e que está associada à saúde da população. A coleta de lixo deveria ocorrer pelo menos três vezes por semana e não é o que acontece. O destino do lixo pelos moradores também contribui muito para agravar esse problema. Jogam de qualquer forma sem se preocupar se os animais (cães, ratos e urubus) terão acesso a esse lixo e também não pensam no ser humano, no profissional (lixeiro) que irá coletá-lo.

Estamos em região de beleza natural. O que o poder público pode fazer para fomentar o turismo, gerando emprego e renda para a população local?

Bernade – Primeiramente, ajudar a população a apreciar melhor a natureza e principalmente a respeitá-la. É preciso conhecer como o ecoturismo é desenvolvido em outras regiões para ter como exemplo essa atividade por aqui. Existem pessoas interessadas nesse potencial pouco explorado. Elas precisam de orientação empreendedora e incentivo para atuar nesse ramo, que se enquadra dentro do desenvolvimento sustentável.

Se estamos na região de maior biodiversidade do planeta, por que as fábricas de cosméticos e fármacos não se instalaram por aqui?

Bernade – Se pensarmos no Acre e em especial no Alto Juruá, vemos que existem pouquíssimas iniciativas de se produzir algo diferente do que já é feito tradicionalmente na região como a farinha de mandioca. Até mesmo as atividades de agricultura são de certa forma modestas em termos de variedades. Os produtos mais utilizados na produção de cosméticos estão praticamente disponíveis por toda a Amazônia, não existindo assim algo especial exclusivo daqui.

Como o senhor avalia a proteção da fauna e flora em nossa região? Os órgãos fiscalizadores estão cumprindo o seu papel?

Bernade – Existe uma carência da atuação de órgãos fiscalizadores por aqui. O Ibama mesmo foi retirado da região por questões políticas. A população não respeita a fauna, dando a impressão de que aqui é uma terra sem leis ambientais. Durante a piracema (defeso), quando os peixes estão migrando rio acima para se reproduzirem, são pescados covardemente com malhas. Os jornais noticiam esse crime ambiental como se fosse um espetáculo de fartura e festa. Animais silvestres como paca e quelônios (jabutis e tracajás) são vendidos na cidade. Todas as manhãs pessoas são vistas com alçapões indo capturar curiós. As autoridades não fazem algo simplesmente porque não querem cumprir devidamente a lei.

Se o senhor andar pela cidade, vai encontrar vários prédios públicos pintados com a cor azul, que é a principal cor do PMDB. Tudo bem! É a cor da bandeira do município. Com base nisso, diga o que é inversão de prioridades em uma administração pública.

Bernade – Uma cidade limpa é sinal de ser um ambiente mais saudável para se viver. Por isso, a adequada destinação do lixo e o tratamento do esgoto devem ser metas prioritárias por estarem diretamente relacionadas com a saúde.

Como é possível superar a política do compadrio em nossa região? Como podemos sair do clientelismo para o estado democrático e da cidadania plena?

Bernade – Cidadania plena é ótimo (risos). Só com o tempo, com o resultado de melhorias na educação e principalmente na conscientização, além das mudanças nas atitudes e hábitos de cada um.
Muito se fala em desenvolvimento sustentável, o que na realidade não tem passado de mera teoria. Em Cruzeiro do Sul, vemos que é um assunto bastante negligenciado pelo poder público local.

Quais os impactos ambientais e econômicos que podem resultar, caso as próximas administrações continuem a desprezar as questões socioambientais?

Bernade – Biomas como a Mata Atlântica e o Cerrado foram muito deteriorados e perderam a maior parte de suas coberturas vegetais. A Amazônia está longe de se encontrar em situação similar. Mas, se os vários municípios desta região não mudarem suas atitudes para continuarem a se desenvolver em harmonia com a natureza, estaremos rumando para perder algo de valor incalculável para a humanidade. As florestas, os rios e os animais devem ser considerados sempre com o avanço do progresso. A Amazônia apresenta importância ímpar para a manutenção do clima em escalas continentais.

 

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