Trabalho escravo na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça

Novato no ofício de derrubar árvores em regiões que deveriam ser preservadas, João se perguntava porque aceitara aquele ganha-pão “errado demais”. Estavam em meio à floresta amazônica nativa, a 90 quilômetros da rodovia Transamazônica, oeste do Pará. Ele e seus colegas haviam acabado de derrubar a primeira das dez maçarandubas que cortariam no dia, quando ouviram o ronco de carros. Espiando entre as árvores, viram a chegada de homens armados, vestidos com coletes da “federal”.


Pátio madeireiro dentro da Terra Indígena Cachoeira Seca, no Pará (Foto: Lunaé Parracho / Repórter Brasil)

“Meu deus, me tira dessa, não me deixa morrer”, ele pedia, em voz baixa, enquanto corria mata adentro. Há apenas 11 dias no ramo, João já ouvira alertas dos colegas mais experientes sobre como equipes do estado tratam trabalhadores como eles: repressão, prisão e, segundo corre pela rádio peão, até violência física.

João fugia porque não passou pela sua cabeça a possibilidade dos funcionários do estado estarem ali para lhe proteger. Mas era esse o objetivo da equipe liderada pelo auditor fiscal do Ministério do Trabalho José Marcelino, e integrada por representantes do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública de União e com Proteção da Polícia Rodoviária Federal. A operação ocorreu em outubro de 2016 no município de Uruará.

A ação testava uma nova estratégia para aplicar a lei na fronteira da destruição da floresta. Ao invés de tratar o trabalhador na ponta como inimigo, a ideia era reconhecê-lo como vítima e até um possível aliado no combate aos crimes da indústria da madeira.

Quando finalmente foram encontrados, João e seus colegas deram longos depoimentos que revelaram crimes muito além dos ambientais. O primeiro deles foi a exploração de trabalho escravo, crime atribuído à pequena serraria M. A. de Sousa Madeireira, na sede da cidade de Uruará.

João trabalhava das 6 da manhã às 6 da noite, sem carteira assinada e sem equipamento de proteção. Embora cortar árvores seja uma atividade de grande risco, com um dos mais altos índices de morte e amputação do país, não havia medidas mínimas de segurança. Acidentes fatais eram descritos como ocorrências banais. “Teve um cara lá que fazia a mesma coisa que eu, morreu. Estava distraído, passou bolando um cigarro. A tora caiu por cima dele, de cima do caminhão. Acabou, foi pro cemitério”, conta João.

No barraco, nada de primeiros-socorros ou qualquer remédio. Apenas uma espingarda para proteção e caça. Além de uma moto velha para emergências, como ataque de bicho ou acidente. Mas os trabalhadores nem contavam com a possibilidade de socorro. “Lá não tem acidente, lá tem morte. Se tu fizer errado, tu já se foi”, diz outro trabalhador. A equipe era composta por quatro homens, responsáveis por derrubar e empilhar as árvores no caminhão, e uma cozinheira.

Mesmo para João, que tem estrada nas armadilhas que se apresentam para migrantes em busca de emprego pelo Brasil, o ofício de derrubar árvores estava além de qualquer outra experiência. Pior do que as empreitadas pela construção civil no sudeste. Pior até do que a passagem por carvoarias no Maranhão, quando seu pulmão doía de tanto tossir.

No barraco onde dormiam, sem paredes e com piso de terra batida, nada barrava o vento frio da madrugada, nem a visita de insetos peçonhentos e outros animais. “Teve uma noite que o cara acendeu a lanterna, tava lá a cobrazona. Mais de dois metros, grossa. Ele pegou uma madeira e deu em cima. Matou na paulada”, lembra João. Não é raro o relato de visitas de onças na região, a reportagem testemunhou as marcas de suas patas pelo chão.

As refeições, feitas em dois fogareiros de argila improvisados em latas de 18 litros, eram de arroz, feijão e macarrão. Com eventuais pedaços de carne de sol, que ficavam pendurados em um varal bastante visitado por moscas. A água vinha em tonéis, com um “farelinho” no fundo. O banho de balde era amparado por um biombo de folhas de palmeira e lona. Para as demais necessidades, a floresta era o banheiro.

O trabalho escravo foi caracterizado devido ao risco que corriam ao exercer as atividades e às condições degradantes em que viviam na mata.

A serraria M. A. de Sousa Madeireira foi obrigada a contratar e demitir os cinco funcionários e a pagar verbas rescisórias no total de 31 mil reais. Na hora do pagamento, o auditor explicou que é protocolar conferir o dinheiro na frente do trabalhador. Que surpresa quando, no acerto para a cozinheira do grupo, faltavam mil, dos 3.900 reais que ela teria a receber. A advogada da serraria se desculpou, “foi um engano”, e o ritual de contar cédula por cédula continuou até o último trabalhador receber.

Crime contra trabaçhadores, indígenas e a floresta

Em seu escritório empoeirado, Manoel Araújo de Sousa, dono da serraria, argumentou que não era responsável pelos trabalhadores. A frente de extração seria uma iniciativa autônoma de um de seus ex-empregados. Depois, admitiu que ficaria com parte da madeira e que era “dono” da terra onde eles trabalhavam, assumindo a responsabilidade.

Para provar que a atividade seria legal, apresentou um mero contrato de compra e venda. Sem registro da escritura ou autorização ambiental. O caso ilustra bem o cipoal de crimes do setor, que combina ilegalidades ambientais, trabalhistas, fundiárias, contra o meio ambiente e contra comunidades locais.

Não seria possível ter qualquer autorização ali, já que a floresta de onde Manuel tirava madeira é terra da união embargada pela justiça. Ainda em 2007, quando já havia evidências do avanço madeireiro na região, o Ministério Público Federal contestou um projeto de assentamento proposto no local. Os procuradores suspeitavam que seria apenas uma justificativa para a abertura de estradas e retirada de madeira.

“Tais projetos não atendem a uma autêntica demanda de potenciais clientes da reforma agrária. São, antes, resultado da pressão do setor madeireiro junto às esferas governamentais, que vislumbram nos assentamentos um estoque de matéria-prima”, lê-se na Ação Civil Pública movida contra a Superintendência do Incra em Santarém, Pará.

A ação segue seu trâmite na Justiça Federal, e o saque da madeira avança.

Mas a serraria de Manoel é peixe pequeno no mar de ilegalidades operado pela indústria madeireira na região. A cidade de Uruará integra um dos maiores polos em expansão da indústria madeireira na Amazônia brasileira. A ilegalidade, porém, é crescente e explícita. Qualquer um pode ver os caminhões sem placa, carregados de toras de árvores nativas, andando em comboio pela Transamazônica. Muitos saem de dentro de terras indígenas, fartas no entorno da rodovia federal, que corta a bacia do Xingu.

Estima-se que 62% da madeira retirada do Pará seja ilegal. Os cálculos são de estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente), que cruzou a quantidade de madeira produzida em 2009 com o volume autorizado pelos órgãos ambientais.

Além do prejuízo à floresta, a ilegalidade do setor também pressiona povos indígenas, assentados e comunidades ribeirinhas, que têm seus territórios invadidos para o roubo da madeira.

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