Tecnopolítica: A viralidade indígena em rede e os novos modos de mobilização

Junho de 2013 continua sendo uma incógnita para os cientistas sociais brasileiros.

E, como salientou o deputado Eduardo Cunha, em sua última entrevista antes de ser preso, “Brasília não sepultou 2013”.

Por isso tentarei, nessa jornada como colunista, buscar genealogias de Junho de 2013, antes e depois daquele dia 17. Farei isso a partir de dados extraídos de plataformas de redes sociais (fundamentalmente, Twitter e Facebook), que temos armazenados no Labic.

Para começar, minha hipótese histórica: o espírito de junho de 2013 começa no dia 08 de outubro de 2012, quando um grupo de 170 guaranis kaiovás, em Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, se revolta contra pistoleiros, que querem expulsá-los de suas terras, respaldados por uma ordem judicial que lhes exigia a “saída” imediata de suas terras. À época, em carta, os guaranis kaiovás comunicaram: “Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.”

Ilustração: Cocar digital, por Fábio Malini e Mídia NINJA

O ato de resistência dos Guarani Kaiovás, difundido pelas redes sociais, fez eclodir um modelo de protesto que articula em rede, sincroniza atos e marchas, em todo país.

As convocações foram feitas pelo intermédio de plataformas de redes sociais: No Facebook, onde foram criadas 247 páginas sobre o tema, as pessoas passaram a modificar seus sobrenomes como sinal de apoio à luta dos guarani kaiovás. De repente, João Xavier virou João Guarani Kaiowá. Há gente até hoje que leva esse sobrenome por lá, no Facebook. Pelo Twitter, uma enxurrada de perfis transformou as hashtags #SomosTodosGuaraniKaiowas e #GenocidioGuaraniKaiowas em assunto do momento, isto é, em um dos tópicos com maior volume de interações sociais na rede, rompendo o silêncio sobre o caso da imprensa, dos governos e das organizações. Na época, foram gerados 73.812 tweets, mobilizando 23.519 pessoas (usuários). Mais de 11 mil links de notícias e posts foram compartilhados.

E essa tempestade de conversação tornou o léxico #SomosTodos um clichê utilizado em qualquer tipo de mobilização virtual no Brasil.

O #SomosTodosGuaraniKaiowas abriu ondas de protestos baseados na defesa dos direitos de minorias.

Esse tema das minorias, então marginal na construção do ideário da esquerda lulista no Brasil, despontou como um dos elementos de metamorfose de uma nova sociedade civil, que rompe com um certo economicismo, subvertendo-o, à medida que a reivindicação de uma vida digna passa por garantir a existência e criação de outros modos de economia, que é o caso dos indígenas, que resistem a serem transformados em pobres, à direita e à esquerda.

As lutas sociais no país passaram, a partir dali, a ser também tecnopolíticas, à medida que a internet se constituía num espaço de produção de narrativas que atravessavam diferentes camadas sociais, convocando-as a ocupar as ruas de modo massivo. Duas a cinco mil pessoas, mobilizadas pelas internet, tomando as ruas espontaneamente, em territórios distintos do Brasil, num efeito de contaminação emocional. Isso era algo novo na cena digital por aqui, até então estávamos acostumados com protestos até grandes, mas muito locais, puxados por organizações com causas específicas.

A novidade aberta pelo #SomosTodosGuaraniKaiowás era a sua dimensão múltipla (um fluxo de desejo para além das classes), distribuída (com muitas lideranças sociais construindo coletivos em rede na produção das manifestações), hipermidiática (cuja cultura era puramente digital), apartidária (sem a participação de bandeiras dos partidos políticos) e direcionada (tendo como alvo os segmentos do poder político que ignorava a realidade dos índios, a saber: o governo Dilma e o Supremo Tribunal Federal, principalmente).

Num olhar retrospectivo a partir dos tweets do período que cobrem os dias 01 de outubro a 30 de novembro de 2012, é interessante observar (Figura 01) a estrutura de rede distribuída, com design mononuclear, num fluxo associativo de sujeitos como para demonstrar que a ação comunicacional se dava em bloco, com diferenças, mas sem antagonismo, algo (design de rede) que voltará a se repetir em junho de 2013.

A estrutura mononuclear de rede é um marca dos movimentos sociais que reivindicam ampliação de direitos.

Figura 1 – Mapa de Rts de mensagens contendos as palavras Guarani Kaiowas no Twitter, entre os dias 01 de outubro a 30 de novembro de 2012. No grafo, quanto maior é o circulo, maior é a popularidade de suas mensagens. Clique para ampliar
É uma política da atenção, cuja mecânica se faz com atores ligadões num tema, aumentando a velocidade da publicação e compartilhamento de posts sobre esse assunto, acelerando a conversação entre os pares, num processo emocional de conversação-fluxo, cujo principal objetivo é a produção de cooperação mútua para se construir uma tendência de opinião e assim pressionar os poderes constituídos na resolução de um determinado problema. É assim que a dinâmica ativista ocorre em tuitaços.

Couberam a todos os “guaranis-kaiowas” abrir um processo de crítica radical ao conluio entre empresas e os distintos governos na degradação sócio-ambiental através de grandes obras de infraestruturas, cujas bases, corruptas, estão a cada dia sendo reveladas nas denúncias da Lava Jato.

Também não custa nada lembrar que, no Rio de Janeiro, em março de 2013, foi a resistência à derrubada do Museu do Índio para criar um estacionamento “olímpico” que abriu o ciclo de lutas cariocas, ecoando, nas ruas, denúncias e mais denúncias contra o modelo de governo Sérgio Cabral e Eduardo Paes, hoje denunciados por esquemas de corrupção da Odebrecht.

Mas a simpatia à causa indígena, após o vigor da viralidade em rede, ganhará novos opositores nas redes sociais, mais à esquerda, supreendentemente. Há aqui então um rastro interessante do cisma no campo progressista antes de Junho. Isso ocorrerá quando a atenção à causa indígena se populariza e se desloca para a crítica ao núcleo duro de um dos grandes projeto do PT-PMDB: a usina de Belo Monte. #PareBeloMonte passou a ser um grito popular digital ocultado por setores progressistas ligados ao governo Dilma. Mais do que isso: a rede governista passou à condição de antagonista declarada, esteriotipando a luta indígena como algo de ecocapitalistas. “Vai ter Copa. Vai ter Olimpíadas. Vai ter Belo Monte Sim”, bradava um dos blogueiros governistas, em janeiro de 2014, quando o tema foi objeto de mobilização virtual.

Por desgraça da história, a Copa do Mundo abriu o ciclo conservador de denúncias dos inúmeros casos de corrupção na construção do estádio e vendas fraudulentas de ingressos, fragilizando, frente ao eleitor lulista, a candidatura de Dilma. As Olimpíadas foram um festival de micos políticos, com um vaiaço ao golpismo de Michel Temer e, depois, com um total abandono das estruturas construídas para os jogos. Já Belo Monte acaba de ter sua licença suspensa pela Justiça e virou caso de polícia, pois que serviu para Odebrecht e outras empresas girarem a máquina de propinas que alimentaram um conjunto de políticos do establishment. Instituídos como um grande “viva a nação”, esses grandes projetos fazem parte da derrocada política brasileira.

A cisão no campo da esquerda pareceu ser um acontecimento de 2013, mas correu paralelo, antes, nas lutas das minorias no Brasil e a tensão com o governo Dilma.

A figura 2 destaca a polaridade entre dois grupos (laranjas+verdes contra vermelhos). Foi Bobbio, um liberal-social, quem insistiu que o valor que caracteriza uma pessoa de esquerda é a luta por igualdade. Se essa for a régua, a esquerda governista passou a se distanciar do eixo igualitário, difundindo a defesa irrestrita da “segurança energética”, que acabou não valendo muita coisa quando a crise hídrica se instalou, e afundou-se de tensões dentro de sua própria base social. 2013 abrigará aquilo que estava presente, bem antes, na genealogia das lutas minoritárias dos indígenas: a esquerda se distanciando de um projeto radical de igualdade.

FIGURA 02 – Polarização entre grupos de esquerda no fluxo de crenças e desejos sobre #BeloMonte. De junho de 2013 a janeiro de 2014, o que há de “direita”, no grafo, é o grupo vermelho, que recusa as denúncias de violações de direitos por parte do complexo industrial de Belo Monte.
No dia 19 de abril de 2017, pelo Twitter, a hashtags #ResistênciaIndígena lembrou de desafios que o país possui no que tange a abarcar e garantir plenos direitos aos povos indígenas, um dos alvos prediletos da direita parlamentar brasileira (por direita, entenda-se: aqueles que não se interessam por qualquer possibilidade de pensar mecanismos igualitários em sociedade).

Os povos indígenas são perturbados por esse novo quadro político brasileiro, em que o governo é tecido mais no Parlamento do que no Palácio do Planalto, em função de uma base extremamente conservadora e corrupta, que ameaça, por exemplo, votar o fim da demarcação indígena pelo Poder Executivo. No dia 19 de abril de 2017, 23.267 perfis foram ao Twitter escrever sobre índios e indígenas, conforme se vê na Figura 3.

Figura 3 – Grafo de Retweets com os termos índio e indígena no dia 19 de abril no Twitter.
Conforme pode ser na Figura 3, há inúmeros grupos (as manchas coloridas representam os mais representativos) traçando pontos de vistas sobre a questão indígena. Todos em fluxos associativos, construindo perspectivas sobre o significado da data. A centralidade na rede é dos ponto de vista verde e vermelho, formados por ambientalistas, organizações sociais do campo e mídias alternativas. Mas ronda-os uma capa amarela, formada pela família Bolsonaro e celebridades da direita privatista, que sustenta que os índios não devem viver como um “animal num zoológico” (“cercados”). Excetuando as mensagens óbvias de felicitação do dia do índios, a trolagem, o novo modo de se fazer política à sério, baseado na construção de divisões radicais de opinião e de ódio ao outro, vai ganhando popularidade no Twitter (há muito bots que inflam esse sentido “liberal” dos bolsominions), como podemos ver nos tweets mais replicados no dia de hoje:

RT @otariano: Hoje é o dia do índio, melhor presente é devolver o Brasil e pedir desculpas!

RT @ironicovcs: hj eh o dia do indio, melhor presente eh devolver o brasil p eles e pedir desculpas

RT @maisasilva: dia do índio https://t.co/yNV6ffRebk

RT @FabianoBaldasso: Feliz dia do Índio https://t.co/w3FZBnI4yh

RT @bbbrindada: feliz dia do indio pra vc que usa “mim” antes do verbo

RT @umvicente: feliz dia do indio pra quem eh indio pra quem nao eh segue em frente tem outras data

RT @ChapecoenseReal: Aqui na Arena Condá quem manda é o Índio! ?? 19 de Abril | Dia do Índio #VamosChape https://t.co/A0O4CoUPNt

RT @brasil_fotos: Pouca gente sabe, mas os índios cobram os pedágios mais caros do Brasil. Índio quer pedágio, se não der pau vai comer.

RT @editorahumanas: Hoje é o dia do Índio Dia de enterrar criança viva, cobrar pedágio e trocar terra da reserva por pickup importada.

RT @MateusTeusu: INVADIDOS, ESCRAVIZADOS E MORTOS (desde o seculo XVI até hoje) 19 de Abril dia da Resistência Indígena #ResistênciaIndígena

RT @SignorinaD: Essa fala acho muito apropriada pro dia do índio https://t.co/sXCqFRmFKP

Até logo mais.

PS: para você, que chegou até aqui, segue o dataset de tweets do #SomosTodosGuaraniKaiowas (2012). Um presente. É só clicar aqui.

Por: Fábio Malini, Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Coordenador do Laboratório de estudos sobre Internet e Cultura. Estuda padrões de dados nas redes sociais brasileiras.
Fonte: MidiaNinja

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