por Paulo Sampaio, da Revista PODER
ilustrações Marina Leme
Você é poderoso, muito poderoso, e considera uma perda de tempo investir em autoconhecimento. Acha que já sabe o suficiente sobre si e, se alguém insiste no assunto, você argumenta: “Pra que se até hoje não fez falta?”. Como o resto da humanidade, você tem duas possibilidades diante desta matéria: ler e não ler. No primeiro caso, segundo quatro renomados psicanalistas consultados por PODER, você é, no mínimo, curioso. No segundo, tudo indica que não tem aptidão para o enfrentamento profundo consigo. O processo psicanalítico provavelmente não aconteceria. Mas existem outras indicações de terapia. Fomos atrás desses profissionais para tentar saber como lidar com a eventualidade da ruína (sim, o poder não exime ninguém desse tipo de inconveniente). Em caso de “desmoronamento” do mundo externo e/ou interno, quais as reações apresentadas com mais frequência, os sintomas, as queixas, o diagnóstico, a indicação de tratamento e/ou de medicamento.
Antes de mais nada, todos esclarecem que as coisas não são tão cartesianas quanto se pode imaginar. Da origem da crise até o divã existem infinitas possibilidades de evolução. Trata-se de uma combinação de ‘n’ variáveis. Para facilitar, os psicanalistas consultados toparam reduzir o espectro de pacientes aos considerados muito poderosos – banqueiros, presidentes de empresas, comandantes de indústrias, eminências de comunidades científicas, mocinhas da novela das 9, técnicos da seleção brasileira etc. Ainda que os contextos sejam diferentes, é possível estabelecer pontos em comum na experiência desses personagens. De acordo com a psicanalista Elizabeth Lima da Rocha Barros, fellow da Sociedade Britânica de Psicanálise, o ambiente do poder é “potencialmente tóxico” para a saúde mental. Possibilita “a exacerbação dos sentimentos de onipotência, arrogância e superioridade”. Nesse sentido, a capacidade de examinar criticamente a realidade fica comprometida. Por sua vez, essa visão distorcida é alimentada pela predisposição do entorno à bajulação e à sedução. “Nesse sistema, qualquer emoção que remeta a sentimentos de fragilidade e vulnerabilidade é eliminada.”
Segundo Elizabeth, essas pessoas procuram ajuda justamente quando perdem as certezas sobre a própria vida e o mundo real e passam a sentir sintomas físicos que, em sua essência, são psicossomáticos. “Frequentemente, elas apresentam gastrite, taquicardia, fadiga inexplicável, insônia, pânico, impotência, mau humor, incapacidade de concentração e muitos outros problemas.” Certo. E o que fazer com esse paciente? O primeiro passo é submetê-lo a algumas entrevistas para ver se é possível investir em autoconhecimento profundo, o que vai demandar dele vontade para promover sondagens interiores, sessões mais frequentes de análise e disponibilidade financeira. Se não for possível fazer a chamada psicanálise clínica, existem diversas terapias indicadas para os inaptos ou para os casos considerados “imediatistas”. O psicanalista Luiz Tenório de Oliveira Lima, autor do livro Freud, da coleção Folha Explica (Publifolha), pontua: “Não é o tamanho do problema, ou a causa, que estabelece a possibilidade de a análise acontecer. É preciso ir com o processo até o ponto de descobrir se há disposição da dupla (analista/analisando) para avançar ao longo do tempo a um estágio profundo”.
Eventualmente, o poderoso que resiste ao processo apresenta entraves como arrogância, excesso de otimismo e autoindulgência – esta última no sentido usado por William Shakespeare em Ricardo III. Na peça, o personagem se porta como se o mundo estivesse em dívida com ele, e, ele assim, pudesse dispor do mundo – sem preocupações éticas – para chegar aonde pretende. “Dificilmente alguém com esses dados de personalidade vai a um consultório procurar ajuda. E, se vai, não fica”, diz Lima. Dependendo do grau de “negação do mundo real”, o paciente bate em retirada. Na experiência de Lima como observador, mais do que como psicanalista, os poderosos que no Brasil usufruem do que ele chama de “conforto oriental”, com regalias de xeques, têm mais tendência a apagar a percepção da realidade. Mas esse automatismo não é garantia de conforto eterno. “Se você tomar esse escândalo recente (Lava Jato), em que a ruína dos envolvidos expôs a família deles, se tornou uma tragédia para mulher, filhos, todo o núcleo próximo: esses homens fizeram escolhas contando com a impunidade, só que a punição apareceu. Por mais cínicos que sejam, negando tudo, o mundo real está se impondo.”
NÃO É PRONTO-SOCORRO
Em caso de desmoronamento súbito, causado, por exemplo, por demissão, falência, crise na família ou perda de entes queridos, o psicanalista vai averiguar a possibilidade de iniciar uma investigação minuciosa. Se detectar a expectativa de imediatismo, muito provavelmente vai encaminhar o paciente para outro tipo de terapia. “Análise não funciona como pronto-socorro”, afirma Lima. As terapias de suporte podem ser feitas na frequência de uma ou duas vezes por semana. A diferença está na profundidade que se pretende atingir. Porém, em todos os casos, se o quadro agudo se impõe durante o processo e o paciente apresenta crises fortes de angústia, ansiedade, depressão, é comum indicar uma medicação que dê a ele condições de apaziguamento para continuar a análise ou a psicoterapia. Todos os profissionais entrevistados acreditam que a medicação deve ser administrada apenas enquanto a crise perdurar. A menos que se pretenda mascarar o sintoma e usar o remédio funcionar apenas para reforçar a negação do mundo real.
O psicanalista Cláudio Rossi, membro da International Psychoanalytical Association, explica que “o médico deve observar quando o remédio ajuda a resolver ou abafar o problema”. Segundo ele, angústia, depressão e ansiedade são sintomas que aparecem costumeiramente em pessoas que usaram o poder de forma abusiva na administração do mundo interno. Muitas vezes, para não mexer no próprio estilo de vida, elas preferem, em vez de investigar a causa do sofrimento, usar a medicação para promover uma “intervenção militar”. E não recorrem só ao psiquiatra para pedir a receita, mas ao cardiologista, ao clínico.
Nenhum dos entrevistados se mostra taxativo em relação a prognósticos, uma vez que, como se sabe, psicanalistas são irredutíveis quando se trata de não enquadrar seus analisandos em estereótipos. Porém, se do outro lado da conversa está um jornalista insistente, eles buscam, na medida do admissível, adaptar o discurso às necessidades do outro. Pergunto ao médico e psicanalista Luiz Meyer se, de acordo com a vivência dele, é possível aferir o tipo de “poderoso” mais vulnerável à debacle (psicológica, naturalmente). Ele responde que o “rico há menos tempo”, especialmente o jovem, está sujeito a se deparar com questões que não lhe ocorreram durante a rápida escalada. A provável imaturidade para lidar com a fortuna pode levá-lo a enfrentar crises com as pessoas que o cercam: “Ele tende a ficar confuso, a enxergar a vida vazia, a colocar em xeque o relacionamento conjugal”. Sobre a grave crise na economia do país, e os prováveis reflexos dela na estabilidade psicológica dos brasileiros, Meyer acredita que as perdas financeiras não serão tão significativas que justifiquem quadros depressivos agudos, tampouco para encher os consultórios de psicanalistas com poderosos em desespero: “Não se trata de um ambiente como o de 1929, quando as pessoas se jogavam pela janela. Mesmo muito insatisfeitas, elas continuam vivendo, ativas, se manifestando contra ou a favor”, diz Meyer, que é professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Uma boa notícia.