Consciência, não ilusões

manfrediniLuiz Manfredini *

manfrediniO que precisa ficar claro nesse reatamento de relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos – simbolizado festivamente na abertura das embaixadas em Washington e Havana nesta segunda-feira, 20, – é que ele representou, sobretudo, uma vitória histórica do povo cubano.

Sob a liderança do Partido Comunista, os cubanos vem resistindo com bravura a um perverso bloqueio comercial, econômico e financeiro imposto a partir de 1961 pelos Estados Unidos, e que custou prejuízos de bilhões de dólares ao país caribenho e sofrimentos enormes ao seu povo.

Ao participar da cerimônia de hasteamento da bandeira cubana na embaixada em Washington, o chanceler Bruno Rodríguez foi incisivo: “Este ato foi possível pela livre e inquebrantável vontade, unidade, sacrifício, abnegação, heroica resistência e pelo trabalho de nosso povo, e pela força da Nação e da cultura cubanas”.

O reatamento não surgiu, portanto, da generosidade do presidente Barack Obama, como se ele chegasse, afinal, à magnânima conclusão de quebrar o gelo com a ilha. Não, o reatamento foi imposto, sobretudo, pela constatação, pelo governo estadunidense, de que os Estados Unidos jamais venceriam os cubanos impondo-lhes o bloqueio. Outros fatores, é claro, contribuíram para a decisão, mas este da heroica resistência do povo cubano foi, a meu ver, o fundamental. Aliás, o próprio Obama, em seu anual discurso sobre o Estado da Nação, pronunciado no Congresso, admitiu: “Estamos pondo fim a uma política que já passou há muito do prazo de validade. Quando aquilo que você está fazendo não funciona há 50 anos, é hora de tentar algo novo”.

Cuba espera se beneficiar dessa reaproximação entre os dois países, desde que, obviamente, se levante o bloqueio que lhe foi imposto há mais de meio século pelos Estados Unidos e ainda vige (Obama enviou há dias, ao Congresso, um pedido nesse sentido). Os cubanos estão, de fato, contentes. Mas, ao mesmo tempo, mantém as orelhas em pé. O “algo novo” da frase de Obama foi, em outro sentido, emblemático de uma disposição manifesta dos Estados Unidos de submeter a ilha por outros meios, ou seja, pela presença econômica e, acima de tudo, cultural, de modo a obter o objetivo não conquistado pelo bloqueio: derrubar o socialismo lá vigente. Esta é a preocupação que, sem ilusões, ronda a reaproximação entre os dois países. Em artigo publicado nesta terça, 21, pela “Folha de S. Paulo”, o escritor cubano Leonardo Padura afirmou que “ouvem-se na ilha as vozes que advertem dos perigos que a nova proximidade pode ter para o status econômico, social e eventualmente político do país”. E mais: “fala-se em evitar o consumismo próprio do modelo americano, da defesa das raízes diante de uma ‘guerra cultural’ aparentemente em curso”.

Valho-me aqui do meu artigo “Não confio na política dos EUA” (frase “roubada” de Fidel Castro, que a pronunciara dias antes)m publicado pelo Vermelho no início de fevereiro:

“Em contrapartida aos duvidosos interesses dos EUA, os cubanos, escolados na luta cotidiana por sua soberania, se mantém, como sempre, firmes. Falando na Terceira Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (Celac), que aconteceu dias atrás [janeiro de 2015] em San José, capital da Costa Rica, o presidente Raul Castro deixou claro que a “normalização só virá com o fim do bloqueio, com a devolução do território ilegalmente ocupado pela Base Naval de Guantânamo, e com o término das transmissões de rádio e televisão com provocações, transmissões estas que violam as normas internacionais”. A reaproximação também deverá implicar, segundo Raul, numa compensação “justa para o nosso povo pelos danos humanos e econômicos que sofreu” com o bloqueio”. E ainda: “não se deve pretender, para que as relações com Estados Unidos melhorem, que Cuba renuncie às ideias pelas quais tem lutado durante mais de um século, pelas quais seu povo derramou muito sangue e correu os maiores riscos”.

Especialistas do Centro de estudos sobre os Estados Unidos da Universidade de Havana, ouvidos por uma delegação do PCdoB que se encontra por esses dias na capital cubana, foram mais precisos. Para eles, segundo nota do portal Vermelho, “o imperialismo não muda sua essência nem desiste das suas pretensões de dominar Cuba. A luta do povo cubano se mantém e se desenvolve num contexto novo, em que passa para o primeiro plano, além do esforço na frente econômica, para construir um pais socialista próspero e sustentável, a luta nas esferas ideológica e cultural, educacional e da preparação da juventude”.

Os cubanos, cuja cultura e consciência política são inquestionáveis, sempre orgulhosos de sua soberania e dos benefícios que, apesar do bloqueio, obtiveram com a revolução, preparam-se para mais uma jornada. Preparam-se para enfrentar a outra face da política do “grande porrete” (“big stick”) criada pelo presidente Theodore Roosevelt para garantir os interesses dos Estados Unidos no mundo. “Fale com suavidade e tenha â mão um grande porrete”, diz o provérbio africano usado por Roosevelt. Em relação a Cuba, usaram primeiro o porrete. Não deu certo. Agora é a vez da suavidade com vistas ao mesmo objetivo de destruir o socialismo com o comércio, a cultura e a ideologia. São os lados de uma mesma moeda.

* Luiz Manfredini é Jornalista a escritor paranaense, autor, entre outros livros, dos romances “As moças de Minas”, “Memória e Neblina” e “Retrato no entardecer de agosto”.

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