25 de abril de 2024

Projeto resgata história do piano no Brasil

culturalpianobrasilO Brasil possui uma rica tradição de compositores e intérpretes de piano. Muitos conseguiram fama e reconhecimento em vida e são festejados até hoje. Outros, talentosos, mas menos célebres, são pouco lembrados atualmente.

Independentemente da popularidade, em ambos os casos deixaram para a história um valoroso legado musical. No intuito de promover um resgate dessa vasta produção, foi criado o Instituto Piano Brasileiro.

O site, no ar a partir de 18 de agosto, reúne informações como biografias, partituras, imagens, discografias, bibliografias, entrevistas, entre outros conteúdos.

Criado pelo pianista e pesquisador brasiliense Alexandre Dias, responsável por importantes pesquisas na área – sobre nomes como Ernesto Nazareth, Marcello Tupynambá, Chiquinha Gonzaga, Henrique Alves de Mesquita e Zequinha de Abreu –, o IPB terá atualizações periódicas e pretende ser uma central tanto de difusão quanto de congregação dos entusiastas do assunto.

Em entrevista ao Portal Brasil, Alexandre Dias comenta a iniciativa.

Qual a expectativa do Instituto?
Ele terá dois vieses. O primeiro é relacionado aos compositores: procuraremos reunir informações sobre o riquíssimo repertório pianístico brasileiro, desde o século XIX ao século XXI, fornecendo informações sobre suas obras, partituras publicadas, carreiras e discografias. O segundo será relacionado aos pianistas: queremos contar a história de nossos intérpretes, suas “genealogias pianísticas” (por exemplo, Nelson Freire foi aluno de Lúcia Branco, que foi aluna de Arthur de Greef, que foi aluno de Franz Liszt), concertos históricos, catalogar discografias completas, além de resgatar a memória de pianistas hoje obscuros, que não deixaram gravações. Tanto para compositores como para intérpretes, não faremos distinção entre popular e erudito, embora iremos privilegiar aqueles que utilizam o piano como instrumento solista. E pelo blog iremos oferecer novos olhares sobre o piano brasileiro, apresentando pesquisas inéditas e entrevistas com pianistas atuais. Com isso, pretendemos consolidar e manter nossa memória pianística, oferecendo uma base de pesquisa robusta para músicos, pesquisadores e profissionais da mídia, além de funcionar como um estímulo para aqueles que ainda não tiveram contato com esse rico universo, e tenham curiosidade em conhecer mais a respeito.

Qual sua avaliação sobre a manutenção da memória musical do Brasil?
Ainda há lacunas imensas, e, em alguns casos, inconcebíveis em pleno século XXI. Porém, o Brasil tem se destacado na preservação de sua memória musical por meio de diversas iniciativas tanto de cunho privado quanto público. Ressalto aqui, por exemplo, a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que fornece gratuitamente mais de 7 milhões de páginas escaneadas, de periódicos publicados desde 1808 (com OCR, o que permite a busca por palavras-chave). Esta possibilidade de se acessar fontes primárias está revolucionado a pesquisa em música e, imagino, em outras áreas também. Outro acervo digital impressionante é o do Instituto Moreira Salles, que desde 2002 disponibiliza mais de 15 mil gravações feitas entre 1902 e 1964 para audição on-line gratuita.

O que poderia melhorar nesse sentido?
Do ponto de vista musicológico, para começar, precisamos de catálogos detalhados das obras de nossos compositores. Pode parecer incrível, mas Zequinha de Abreu ainda não tinha um catálogo completo de suas obras até o início de 2015. O musicólogo Manoel Aranha Corrêa do Lago também chamou a atenção para o fato de que Carlos Gomes, que nasceu há quase 200 anos (1836), também não tem um catálogo completo de suas obras. Tendo o catálogo elaborado (com datas de publicação e composição, nomes das editoras, números de chapa, dedicatórias etc.), o segundo passo é encontrar todas estas partituras. Infelizmente, a obra de diversos compositores encontra-se gravemente ameaçada, pois não sabemos onde estão suas partituras. Do Henrique Alves de Mesquita, por exemplo (primeiro músico brasileiro a estudar em Paris, e que está no centro de origem da música brasileira), cerca de metade de sua obra está desaparecida (conhecemos apenas os títulos, mas não as músicas). Depois de encontradas as partituras originais, um terceiro passo é a elaboração de boas edições críticas e a disponibilização para o público interessado (seja gratuita na internet ou em edições comerciais). Isto permitirá uma divulgação mais profunda destas obras, com projetos para gravações de integrais, concertos, livros, trabalhos acadêmicos e mídias tradicionais e digitais.

Quais os desafios de resgatar e manter a memória do piano brasileiro?
O piano brasileiro tem uma história riquíssima, funcionando como um mediador que passa por praticamente todos os gêneros já abordados por compositores brasileiros. Até as primeiras décadas do século XX, por exemplo, todas as músicas eram publicadas em partituras para piano (Rio de Janeiro e São Paulo eram chamados de “pianópolis”). Além disso, o Brasil produziu incontáveis concertistas de projeção internacional (estamos, atualmente, na 5ª geração, desde Guiomar Novaes até Cristian Budu), além de pianistas populares que deixaram um legado importantíssimo. Porém, esta história está extremamente pulverizada hoje, não havendo um centro que reúna informações como: dados biográficos e informações sobre as respectivas carreiras, discografias, catálogos de obras e partituras publicadas de compositores que escreveram para piano, bibliografia especializada sobre o tema e linha do tempo. Para cada uma destas informações é necessário buscar em acervos tão diversificados quanto enciclopédias antigas fora de catálogo, bibliotecas nacionais e internacionais, sebos e leilões on-line, além de acervos particulares e depoimentos pessoais. Um uso aprimorado dos mecanismos de busca na internet também é fundamental.

O piano brasileiro tem alcance internacional?
O piano brasileiro ganhou imensa força ao longo de todo o século XX, com uma produção contínua desde autores nascidos no século XIX, como Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e Alberto Nepomuceno, até compositores contemporâneos, como Ronaldo Miranda, Marlos Nobre e André Mehmari. Várias dessas obras têm sido tocadas no Exterior, chegando a ser registradas por gravadoras nos Estados Unidos e na Europa. Muitos pianistas têm se interessado em tocar nosso repertório, porém o grande obstáculo que se impõe é: como chegar a estas partituras? Boa parte delas não é reeditada há décadas, e outras nunca foram sequer publicadas ou gravadas. Isto desestimula o músico a tocar o repertório brasileiro, optando muitas vezes por obras de compositores europeus consagrados, que já possuem 100% de sua obra resgatada e disponível com facilidade.

E os compositores brasileiros de piano têm ressonância fora do País?
Alguns compositores brasileiros têm sido gravados com alguma frequência no Exterior, como Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Camargo Guarnieri, Henrique Oswald, dentre outros. Tom Jobim também é um nome que imediatamente é associado quando se fala em música brasileira lá fora. Porém, acredito que ainda haja um vasto terreno a ser percorrido para que a música brasileira seja reconhecida em toda a sua riqueza e genialidade e, para isso, é necessário primeiro que nós brasileiros a conheçamos.

Quais as suas principais descobertas e resgates?
Como ainda há muito a ser feito em termos de resgate da música brasileira, praticamente qualquer compositor que pesquisarmos trará surpresas interessantes. A pesquisa ininterrupta que tenho feito há mais tempo é relativa a Ernesto Nazareth, pela qual foi possível descobrir que ele é um dos compositores brasileiros mais gravados (com mais de 2.800 gravações) e foi possivelmente o primeiro brasileiro a ter um grande sucesso no Exterior (com o maxixe “Dengoso”, em 1913-1914 na Europa e Estados Unidos). Também apareceram inúmeras partituras preciosas, e até então desconhecidas, de todos os outros compositores que pesquisei até o momento (incluindo os mais recentes, Luciano Gallet e Sinhô, cujos acervos digitais estão quase prontos). Todos os achados que apareceram só foram possíveis graças à grande colaboração de instituições como Instituto Moreira Salles (que produziu e mantém o site www.ernestonazareth150anos.com.br), Biblioteca Nacional, Museu da Imagem e do Som-RJ, e uma ampla rede de pesquisadores e colecionadores que têm respondido solidariamente aos e-mails que envio em busca de partituras desaparecidas.

O que pode ser considerado perdido nessa história (partituras, gravações etc.)?
É difícil dizer com precisão, pois ainda estamos em uma fase que carece de muita pesquisa primária, para se levantar o que é conhecido (ou seja, o que exatamente está acessível em nossos diversos acervos públicos). Porém, posso afirmar que, dentre os compositores que pesquisei, todos, com exceção de Ernesto Nazareth, possuem obras desaparecidas (Chiquinha Gonzaga, Marcello Tupynambá, Henrique Alves de Mesquita, Zequinha de Abreu e Eduardo Souto). Recentemente, o colecionador Sandor Buys encontrou uma partitura de Chiquinha Gonzaga desaparecida há 120 anos, por exemplo. Há muitas gravações também que nunca foram encontradas, principalmente realizadas entre 1902 e 1964, isto é, na era dos 78-RPMs. Também há muitas informações que só estão presentes nas memórias de pessoas que conviveram com os mestres do passado, e que não foram registradas em depoimentos.

O que poderia ser apontado como o “santo graal” do piano brasileiro, aquilo que os pesquisadores sabem da existência mas ninguém encontrou?
Há muitos exemplos, vou mencionar três: 1) As gravações que o pianista Henrique Vogeler fez de músicas de Ernesto Nazareth na década de 1940, que até hoje estão desaparecidas. Vogeler era um especialista em Nazareth, e chegou a substituí-lo como pianista no Cinema Odeon na década de 1920, então estas gravações seriam documentos muito importantes. 2) As partituras do compositor Eduardo Dutra, aluno de Henrique Oswald, que deixou um fantástico prelúdio Op.32 para piano, mas cujo resto da obra (pelo menos um concerto para piano e orquestra, uma sonata para piano, outros prelúdios) está completamente desaparecido hoje. 3) A gravação que o próprio Camargo Guarnieri fez de seus 50 ponteios (um dos conjuntos de obras mais importantes do repertório brasileiro) para a Rádio MEC na década de 1960, e que até hoje só foi divulgado em partes. Eu também colocaria como um grande sonho ver gravada a obra completa de todos os nossos grandes compositores. Neste ano será lançada a primeira gravação integral de Ernesto Nazareth, pela pianista Maria Teresa Madeira, um projeto há muito aguardado. Porém, espero que este seja apenas o começo. Na Europa e Estados Unidos há muitos anos são gravadas, sistematicamente, as obras completas de compositores como Chopin, Beethoven, Bach e Poulenc. Agora precisamos fazer isto para Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Alexandre Levy, Tia Amélia, Lorenzo Fernandez, Chiquinha Gonzaga, Marcello Tupynambá, dentre tantos outros.

Como será mantido o site?
Por um ano tentei a via dos editais de cultura e também busquei patrocínio direto, sem sucesso. Decidi custear a programação do site, que ficou a cargo de Henrique Palazzo, e gerei o conteúdo inicial para inauguração que ocorrerá neste mês, reunindo as pesquisas que tenho feito sobre o piano brasileiro nos últimos anos. A manutenção do IPB será feita por financiamento coletivo, com sistema de metas mensais.

Como você avalia o momento atual do piano no Brasil?
É difícil ter uma ideia precisa do status atual do piano no Brasil. Se por um lado, o instrumento perdeu muito espaço (antigamente, a maioria das residências possuía um piano, e alguém da família fazia aulas), por outro, vemos o contínuo surgimento de grandes pianistas, que inclusive têm se destacado em importantes concursos. Temos visto também o lançamento de CDs independentes de intérpretes da nova geração (o Prêmio da Música Brasileira na categoria revelação deste ano foi para um pianista, por exemplo). Mas é notório o fato de a grande mídia não fornecer espaço para a cultura do piano em geral, e isto acaba não estimulando que potenciais apreciadores (e até mesmo pianistas) surjam.

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