24 de abril de 2024

Você já tomou leite de sova?

Estava um mau cheiro terrível na academia. Resultado talvez de algum aluno com suor mais forte, ou talvez, a soma de vários. Cá e acolá, os alunos, incomodados faziam caretas, denunciando a incomoda presença daquele ‘pixé’.

Virei-me para um conhecido, que sabia ser morador da zona rural e brinquei:

-Isso aqui tá o puro pau bosta!

– Tá mermo! Respondeu

Outro aluno morador da zona urbana de Cruzeiro do Sul olhou-nos sem entender muito do que estávamos falando, sem fazer a mínima ideia de que seja ‘pau bosta’.

Foi quando me dei conta de uma coisa: o aprendizado que tive com os mais velhos sobre ‘coisas da floresta’ desde os meus primórdios no Juruá, aparentemente, não foi repassado para a geração mais nova. Há uma lacuna na transmissão do conhecimento.

Voltei-me para o colega urbano, e perguntei:

– Você conhece ‘pau bosta’?

-Não

– E ‘merda de gato’?

– Não

-‘Milho cozido’?

-Não

-‘Cabelo de paca’?

– Não

E riu-se. Provavelmente achando que se tratava de figuras mitológicas tão reais quantos  centauros e unicórnios.

Expliquei que pau bosta, merda de gato e milho cozido são madeiras que recebem estes nomes populares pelo cheiro que soltam quando são serradas. Tem também o louro abacate, que é super cheiroso e parece cânfora. A canela -da-mata, o cumaru-de-cheiro, e outras tantas. Já o ‘cabelo de paca’ recebe esse nome pela aparência. Tem ainda o amargoso. Ái de quem triscar a língua ou mesmo inalar a serragem.

Mas aí eu trouxe do âmago algo realmente encravado em minhas memórias juruaenses.

– E leite de sova? Você já tomou?

Aí o sujeito me olhou desconfiado, achando que eu tava tirando uma com a sua cara.

Voltei dezesseis anos no passado.

O velho seringueiro conduzia um pequeno grupo até a ‘floresta’. Éramos cinco ou sete pessoas, não me recordo ao certo. O que me lembro bem, é que a ‘floresta’, não ficava longe. Andamos não mais do que dez minutos de sua casa, ali no bairro Boca da Alemanha, o mesmo onde hoje se situam o campus da UFAC e a Cidade da Justiça. Enfim, a ‘floresta’ estava ‘bem ali’.

Seu Chico conduziu-nos até a árvore, e apresentou-nos:

– Esta é a Sova

Com sua ‘faca de seringa’, seu Chico fez algumas incisões na casca, de onde logo brotou alvíssimo leite que ele colheu em uma folha habilmente fechada em forma de cone.

Todos tivemos a oportunidade de saber e sentir no paladar o sabor da sova, um leite levemente adocicado, comestível, e segundo seu Chico, medicinal.

– Bom pra curar gastrite. E verme também

Quão fabuloso é beber do leite de uma árvore? Há algo parecido nos contos de fadas?

Desde que seu Chico se foi, a ‘floresta’ tem ficado cada vez mais longe.

Talvez a árvore de sova ainda esteja lá. Mas quem sabe chegar até ela? Quem sabe colher o leite?

Penso que na verdade ‘floresta’ seja talvez apenas uma abstração para algo longe.

Quem vê de perto, não vê ‘floresta’. Quem vê de perto, vê sova, vê buriti, vê açaí, vê jarina e caranaí. Quem vê de perto vê jiboia, preguiça, mambira e jabuti.

Opa, mas tudo isso se vê aqui, não precisa ir tão longe. O açaí está presente nos mercados. Tem cheiro, cor e sabor. Alimenta nossos corpos e dos nossos filhos. O mesmo se diz do buriti. Jiboias cruzam nossos caminhos. Sim, para que esconder, para que ter vergonha de dizer que as jiboias andam na estrada? Melhor seria se notássemos sua presença e evitássemos que fossem atropeladas. E as preguiças? Diz aí, Corpo de bombeiros, quantas ocorrências vocês atenderam de bichos preguiças na cidade?

A floresta, assim minúsculo, está lá longe: “- Ih! Lá vêm aqueles ecologistas querendo preservar a floresta!” … Tão longe! Tão distante da nossa realidade. O que tem a ver comigo se ela é desmatada e destruída para ceder espaço ao ‘desenvolvimento’?

A ‘floresta’, assim, entre parênteses, é para dizer que a floresta, assim, minúscula e distante, não existe. É só um lugar de conto de fadas, onde árvores dão leite, palmeiras soltam frutos mágicos de sabor inigualável e cobras rastejantes se vestem de cores hipnóticas tão fantasiosas que só podem fazem parte de alguma fábula.

Mas talvez, se você tiver tomado leite de sova, aconteça como naqueles contos em que se a pessoa prova algo daquele reino, não pode mais sair. Estará preso para sempre naquele reino mágico.

Talvez você tente sair e até anteveja por uma fresta, a ‘realidade’.

A ‘realidade’, assim, entre parênteses, é condicionada pela linguagem que a descreve. Se ninguém mais se lembra do leite de sova, como saber que ele é real?

Penso em como estas lacunas de saberes criam também lacunas na nossa percepção da realidade.

A nossa percepção da realidade, condicionada pela linguagem, tem nos tornado mais próximos ou mais distantes de nossa realidade física, geográfica e histórica? Porque, queiram ou não, a nossa realidade, é a floresta.

A qual ‘realidade’ tem servido o sistema de transmissão de conhecimento que chamamos de educação?

É só uma pergunta.

 

*Leandro Altheman Lopes é jornalista e escritor do livro’ Muká, a Raiz dos Sonhos’. ([email protected])

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