Dois dos músicos brasileiros mais conhecidos em todo o mundo, Tom Jobim e Hermeto Pascoal certa vez subiram juntos num elevador em Nova York. Hermeto ia tocar flauta em um disco de Tom:
— Nisso, tocou “Garota de Ipanema” no sistema de som. O Tom tirou o chapéu e disse: “Tô cansado dessa música, Hermeto. Eu gostaria de fazer algo no estilo do Quarteto Novo (grupo de Hermeto, que em 1967 defendera “Ponteio”, com o autor Edu Lobo, no III Festival de Música Popular Brasileira).” Ele estava acuado, sem saber para onde ir além da bossa nova. Eu disse então para que ele fosse para o Brasil por um, dois anos, e depois voltasse. Quando você se repete na música que criou, você se cansa antes dos outros.
O conselho, acredita Hermeto, surtiu efeito (três meses depois, Tom Jobim lançaria a célebre “Águas de março”). E continua a servir para o próprio músico, à beira dos 80 anos de idade, que serão festejados hoje (dia do aniversário) e amanhã, em shows na Areninha Cultural Hermeto Pascoal, em Bangu, bairro que acolheu Hermeto no Rio, e onde ele voltou a morar há um ano, depois de mais de uma década em Curitiba (tempo em que ficou casado com a cantora Aline Morena, que segue em sua banda).
— Nunca fiz um grupo de bossa nova ou de forró. Cansei de tocar em festivais de jazz no exterior, mas nunca vou tocar apenas jazz. Vou tocar frevo, baião, música clássica. Então eu chamo isso de música universal. É o único rótulo que eu acho que se pode usar — defende Hermeto, prometendo apresentações sem hora para acabar, com a presença dos seis filhos, 13 netos e dez bisnetos.
Os shows são parte de um grande projeto de homenagens ao músico nascido em Lagoa da Canoa, Alagoas, do qual fazem parte uma exposição itinerante de suas partituras, fotos e instrumentos (que fica até sexta na Areninha, e no sábado vai para a Arena Carioca Fernando Torres, onde também haverá espetáculo), além de apresentações e workshops na Europa (no mês que vem). O calendário de eventos foi aberto no início do mês, em Paraty, com o festival “Viva Hermeto! 80 anos”, e seguiu na semana passada, com um concerto da Orquestra Sinfônica do Paraná regida por Wagner Tiso. Lá, depois de 30 anos, Hermeto teve a chance de ouvir pela segunda vez na vida a sua “Sinfonia em quadrinhos”. E chorou.
— As pessoas não tocam a minha música, só comigo. Quando posso, eu vou. Quando eu não posso, eles não tocam — lamenta.
‘A IDADE, PARA MIM, NÃO EXISTE’
Homem dos mil instrumentos, que provou a viabilidade de se fazer música de alta elaboração rítmica, melódica e harmônica com panelas, chaleiras, regador, brinquedos infantis e até animais, Hermeto não acha grande coisa a chegada aos 80 (“A idade para mim não existe, o que tem é o dia a dia. Eu não me canso. Quando se é feliz, a gente aprende a passar a felicidade para as pessoas”, ressalta). Autodidata, ele só começou a escrever partituras depois dos 41 anos (“Minha vida é a prática, sou 100% intuitivo”, explica).
— Quando eu senti que estava sabendo melhor a teoria, que sabia escrever, aumentou meu número de composições, porque vi que podia registrá-las — conta ele, hoje com mais de oito mil músicas, entre elas as 366 do livro “Calendário do som” (Editora Senac/Itaú Cultural, 2000), que escreveu ao longo de um ano, com o intuito de homenagear todos os aniversariantes do mundo.
Hermeto entrou na música aos 10 anos, quando aprendeu acordeom com o irmão José Neto, e aos 14 estava tocando com ele no rádio, no Recife. Aos 20, seguiu para o Rio, onde atuou nos grupos do flautista Copinha e do violinista Fafá Lemos. Atento ao preconceito contra os músicos do Nordeste, que supostamente só sabiam tocar baião, ele ouviu os conselhos do guitarrista Heraldo do Monte (com quem formaria, mais tarde, o Quarteto Novo) e começou a dedilhar o piano (“Fiquei uns dias só tocando com a mão direita até que a esquerda começou a andar e não parou mais”, conta). Logo, sem ter nem uma aula sequer, Hermeto estaria atacando de pianista.
— Um dia, em São Paulo, fui convidado para tocar piano na boate Chicote, mas quando cheguei ela estava fechada. Precisavam de um contrabaixista numa outra boate, a La Vie en Rose, e eu, que nunca tinha tocado contrabaixo, fui lá. Com 20 minutos tocando, vieram as bolhas nos dedos. Fui na farmácia, botei esparadrapo e continuei — lembra. — Fiquei tocando contrabaixo lá até que chegou uma cantora do Rio, que me conhecia e que, quando me viu, disse “Meu pianista!”. E eu: “Não, sou o Sivuca!”. Tinha medo de perder o meu emprego de contrabaixista.
Ao longo dos anos 1960, Hermeto faria parte (atuando ainda como flautista) do Sambrasa Trio, do Quarteto Novo e do Brazilian Octopus, grupo criado pela empresa têxtil Rhodia para animar seus desfiles. Em 1968, o Brazilian Octopus lançou um cultuado (e recentemente reeditado) LP no qual o músico albino toca, mas não aparece na capa.
— Não sei se eles me achavam bonito demais… — brinca. — Foi uma fase em que eu cismei de deixar o cabelo crescer. Depois, fui convidado pela própria Rhodia para ser manequim.
Em 1971, levado pelo percussionista Airto Moreira (que tocava com o trompetista e mito do jazz Miles Davis), o músico gravou nos Estados Unidos “Hermeto”, seu primeiro LP como estrela, no qual gravou com orquestra e teve sua primeira experiência como arranjador.
— Acharam muito diferente a minha escrita, quiseram que eu fosse morar lá, mas eu achava que tinha algo a plantar no Brasil — diz ele, que teve dois temas gravados por Miles (sem que ele desse crédito). — O Miles sempre me convidava para tocar na banda dele, mas eu brincava que ia formar em São Paulo o maior grupo do mundo, de música universal.
Os grupos que Hermeto veio montando desde então formaram músicos, que criaram suas próprias escolas, seguindo os princípios básicos da visão de mundo desse alagoano que continua a ser procurado, pessoalmente ou pela internet, por instrumentistas das mais diversas idades:
— Eu fico com pena de ver uma criança tocar uma flauta imitando o Altamiro Carrilho. A semelhança existe, mas a imitação é burrice. O menino foi orientado, ele não tem culpa, mas até a cara dele fica velha quando toca. Eu luto contra isso, contra o cara ter um estilo quadradão. O próprio Altamiro, se ele estivesse aqui na Terra, ia reclamar do menino.