Desenvolve-se, mais uma vez, a história de massacres e usurpações que marca as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas. No centro da disputa atual está a figura jurídica da Terra Indígena (T.I.), envolvendo concepções bem diferentes sobre o tema.
Para as populações indígenas terra não é commodity, como explica o xamã Davi Kopenawa: “A terra é mais sólida do que nossa vida! Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de árvores, frutos, animais e peixes”.
Como ele e outras lideranças alertam, aquilo que atinge a terra dos indígenas também afeta as condições de vida de animais, plantas e, inclusive, dos brancos.
Tais concepções foram, de algum modo, introduzidas no capítulo “Dos Índios” da Constituição de 1988 (art. 231-232), que vem garantindo a demarcação das terras, ainda que de forma cada vez mais morosa.
Na medida em que foi percebida a potência do artigo 231, aquele que garante a T.I., o interesse econômico voltou suas baterias contra ele. A PEC 215 é um grande expoente disso -a estratégia de trazer para o Congresso a prerrogativa sobre as demarcações visa travar esses processos.
A CPI Funai/Incra, voltada também às terras quilombolas, é a estratégia mais evidente daquilo que move esses interesses no Legislativo. Seu relatório final propõe o indiciamento em massa de lideranças indígenas, de antropólogos, indigenistas e procuradores da República.
A lista de pessoas indiciadas é tão esdrúxula quanto os crimes a elas imputados. Por outro lado, boa parte dos arrolados nem sequer foi convocada pela CPI, tendo seu direito à defesa cerceado. Essa farsa é um jogo político bem calculado.
Ao criminalizar atores sociais que colocam empecilhos à apropriação espúria das terras indígenas e quilombolas e ao desqualificar o trabalho acadêmico que sustenta argumentos em favor dessas terras, pretende-se acuar a defesa desses direitos e sustentar aberrações jurídicas, fruto de novas interpretações do texto constitucional feitas pelo STF.
Foi assim que a ideia de “habitação em caráter permanente”, do art. 231, foi atrelada a um “marco temporal”, a data da promulgação da Carta Magna (05/10/1988).
Ainda que o STF tenha decidido que o conceito não se aplicaria em casos de “renitente esbulho” (desocupações forçadas), em julgamento posterior estabeleceu que, para a configuração do “esbulho”, o conflito possessório deve persistir até a data do “marco”. Assim, desconsiderou a contínua história de genocídio indígena.
Esta é uma disputa de ideias com efeitos concretos, pois legitima ações como o brutal ataque aos Gamela no Maranhão, ocorrido há poucos dias, e mostra que a falta de representação política dos indígenas lhes é fatal.
Do outro lado, o cenário de hiperrepresentação teve seu coroamento na nomeação do deputado ruralista Osmar Serraglio (PMDB), relator da PEC 215, ao Ministério da Justiça. Após a agressão sofrida pelos Gamela, o ministro limitou-se a pôr em dúvida a identidade indígena deles, reproduzindo a narrativa da negação da diferença e fundamentando a violência perpetrada. É grave, uma vez que este é o discurso oficial do Estado.
Como diz o líder Ailton Krenak, a falta de representação indígena é a prova de que ainda estamos no modelo colonialista, em que as decisões sobre a vida dos índios são tomadas por quem é, no mínimo, indiferente a eles.
A proposta indígena é por uma mudança radical de paradigma, fundamentada na concepção de terra indissociável da própria vida, inalienável e incompensável, seja por dinheiro ou políticas assistencialistas. É vital, portanto, a presença indígena na representação política do país.
Artionka Capiberibe, professora de antropologia da Unicamp, membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Oiara Bonilla, professora de antropologia da Universidade Federal Fluminense
Pedro Pulzatto Peruzzo, advogado, professor pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Campinas na linha de direitos humanos e cooperação jurídica internacional