A Justiça, desesperadamente

Consentida e resignada perante a lei, a justiça como instituição é pedra, água, claridade. Até que a transgressão do indivíduo que a integra como membro diga o que entende por poder do poder judiciário. Muitos, atraídos pelas sombras do concurso público e as nomeações que não lhes vasculham a moral e os costumes, são hoje os que mais contribuem para a reprodução da injustiça e o bloqueio da transformação social.

Seus caminhos não foram feitos para todos percorrerem. Costuram uma ilegalidade na lei e a vestem como legal. Assim fizeram com os auxílios diversos que usufruem, como o despudor de receber para morar em casa própria. Ou, outra barbaridade, a apropriação pessoal de dinheiro da União que os advogados do Estado se concedem ao tomar posse dos honorários de sucumbência quando sai vencedora a administração pública. Aqui é o fim do mundo!

O orçamento próprio obstrui a coalizão ética que torna os três poderes responsáveis pela sobrevida material da nação. Vivendo à margem das dificuldades da maioria dos funcionários públicos integrou-se à desigualdade social brasileira. Sua ferida é a escandalosa doença nacional do privilégio.

A desmistificação do “saber” de muito juíz, que contamina toda a carreira e atrai os sem vocação, deve ser feito não somente pela ética utilitarista que usa, mas pelo fundamento dela: as ilusões de que a primazia da responsabilidade perante a lei e a constituição pode ser prerrogativa de servidor cuja consciência profissional é adubada por condição econômica ficcional, fruto de sua própria outorga. Sem renovar suas diretrizes morais em relação ao impulso por gratificação o judiciário terá que cuidar de retirar, rapidamente, da singela noção de remuneração digna e transparente uma das qualidades que pode indicar a honra de um juiz.
Assim, o condicionante econômico nos juízes nunca irá amadurecer, pois continuará a ser o de um pária privilegiado que se autoconcede distinção, julgando os outros como não se julga.

Quem quiser entender a concretude da vida real brasileira, seus artefatos e figuras manipuladoras, concentre-se na “autoridade fenômeno”. Produção superficial comum na rotina política, vazou pelos buracos das contradições das forças econômicas, do mundo virtual que separou trabalho e emprego, e das relações de produção modernas fluidas e recicladas. O mau político, o mau juiz, o mau advogado da união, o mau promotor, cada um, de forma não arbitrária, contém um ao outro dentro de si. Sem se dar conta estão se tornando, por culpa do corporativismo delirante que tomou conta da administração do Estado, o paroxismo do mau conceito de autoridade.

O feudalismo judicial brasileiro, em sua banal cena primitiva, aproveita-se do país sem história em que nos tornamos e amplia a simulação da justiça. Cuidado: quem não fura a bolha da insignificância social não deve trapacear com a justiça. Quem fura, legal ou ilegalmente, se já não tiver uma das três autoridades a tiracolo será fácil encontrar uma para pôr no bolso.

Se alguém tem esperança de que o Brasil não viva a violência institucional que atormenta vizinhos e outras democracias ficcionais, observe bem o movimento em direção ao deserto que políticos andam fazendo, abraçados a juízes, para levar toda a justiça no bico e enterrar o princípio da igualdade de todos perante a lei.

O que está em discussão é se podemos interromper esta erosão social, política, moral, econômica e cultural do deserto de azulejo que limou o discernimento do país. É esse período de falsa prosperidade e aventureira facilidade que pressiona o Supremo para afundar de vez a justiça na sua banalidade histórica: continuar manipulando um país injusto, desigual e totalmente autoritário. Onde qualquer cidadão, inclusive o Presidente da República, pode ser preso ou intimidado por um juiz pelo que lhe der na cabeça naquela hora, mas um condenado ilustre, exige que se convoque uma reunião de todos os juízes para que mudem a lei e a ajustem ao figurino do espantalho da democracia que somos.

Paulo Delgado é Sociólogo.

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