Dignidade humana e transexualidade: Somos os direitos que temos

“Somos iguais, sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser”. A afirmação é da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, e foi proferida durante uma decisão sem precedentes na corte: O direito para que um dos grupos mais estigmatizados da sociedade, os transexuais e transgêneros, possam alterar seus nomes no registro civil sem a necessidade de realização de cirurgia de mudança de sexo, tratamento hormonal ou autorização judicial.

Com a decisão, os transgêneros e as mulheres e homens transexuais podem requisitar a alteração do nome social e do gênero no registro civil diretamente no cartório. A regra vale todo o país.

No Acre, o Ministério Público do Estado (MPAC) tem envidado esforços para que a decisão do STF seja devidamente cumprida. A Promotoria de Justiça Especializada de Defesa dos Direitos Humanos instaurou procedimento administrativo para acompanhar o devido cumprimento da decisão e verificar qual protocolo está sendo adotado e seguido nas repartições do 1º, 2º e 3º Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais de Rio Branco e do Interior do Estado do Acre.

As providências foram tomadas a pedido do Centro de Atendimento à Vítima do MPAC (CAV), órgão criado em 2016, responsável pela centralização do apoio e assistência à preservação da vida de pessoas vítimas de crimes sexuais, homofobia e mulheres revitimadas de violência doméstica e familiar e seus familiares.

A Promotoria de Defesa de Direitos Humanos também solicitou informações à Corregedoria Geral de Justiça acerca da existência ou não de regulamentação do procedimento adotado pelos cartórios de registro civil das pessoas para o nome social.

De acordo com o promotor de Justiça que instaurou o procedimento, Marco Aurélio Ribeiro, a priori, não se trata de uma investigação, mas de um acompanhamento.

Procurador Marco Aurélio/Foto: Ascom

“Nossa intenção é aferir que os cartórios no estado dêem cumprimento à decisão como forma de minorar o constrangimento sofrido por transgêneros e transexuais diariamente, mas, sobretudo, garantir a eles a dignidade de serem reconhecidos como realmente se sentem. Assim, buscaremos junto aos órgãos competentes que o direito seja assegurado. Por isso é importante a participação da Corregedoria Geral de Justiça, que é quem disciplina e controla os cartórios no estado”, explica Marco Aurélio.

A mudança

De acordo com a decisão do STF, não se trata de uma nova expedição de certidões de nascimento por parte dos cartórios, eles precisam, apenas, proceder à mudança de dados no documento já existente.

Para isso, a pessoa precisa somente ir ao cartório, sem a necessidade de comprovar sua identidade psicossocial; esta deverá ser atestada mediante autodeclaração, ou seja, não será preciso entrar na Justiça para pedir a alteração. Quanto ao motivo da mudança no registro, ficará sob sigilo no próprio cartório.

Apesar de as alterações dizerem respeito à identidade de gênero, e não ao sexo, os registros de identidade no Brasil adotam apenas o termo sexo. Por isso, é o registro de sexo que será alterado no documento. A mudança será de acordo com o gênero com o qual o indivíduo se identifica.

Respeitar a imagem de uma pessoa é respeitar sua honra

O princípio do respeito à dignidade humana é o mais invocado nesta decisão. A Constituição brasileira de 1988 prevê que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Aduz, ainda, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Procuradora Patrícia Rego/Foto: Ascom

“É claro que essa igualdade não exclui as diferenças, porque estas existem e sempre existirão como manifestação da própria humanidade. O que essa igualdade prevê, então, é o respeito a essas diferenças, proibindo a discriminação”, destaca a coordenadora do Centro de Atendimento à Vítima do MPAC, procuradora de Justiça Patrícia Rêgo.

A decisão do STF desponta como um mecanismo eficiente no combate à homofobia e à transfobia, um olhar além dos muros do tradicionalismo e da falta de empatia, onde pessoas sofrem preconceito e discriminação em situações rotineiras do dia a dia, como ao receber um atendimento, onde são chamadas por um nome social que não condiz com a imagem e aparência física apresentada.

No âmbito do MPAC, em cumprimento à Resolução 08/2017, do Colégio de Procuradores, já foi disciplinado o uso do nome social de todas as pessoas travestis, transexuais e aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida para fins de identificação.

“O preconceito, obviamente, não se limita apenas nestas situações. Espalha-se por todas as relações sociais e instituições, alcançando a família, a escola, a igreja, os estabelecimentos públicos e privados etc. Observa-se o quanto deve ser difícil assumir-se transexual ou transgênero, principalmente quando não se possui documentos adequados ao seu fenótipo”, ressalta a coordenadora do CAV.

O direito de alterar o nome e o gênero no documento sem precisar de autorização judicial consiste, sobretudo, em um direito de viver e ser reconhecido ou reconhecida de acordo com a própria identidade, sem passar por constrangimentos.

“Constrangimentos geram lacuna na vida social das pessoas. No caso dos transexuais e transgêneros, acredito que dificultou o acesso de grande parte deles à educação, à saúde, à Justiça, além de ter contribuído para que alguns ficassem à margem da sociedade, tornando-os mais vulneráveis à violência”, diz Patrícia Rêgo.

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