Quase um quarto das florestas públicas da Amazônia está sem proteção e sob risco maior de desmatamento. São 70 milhões de hectares de floresta, uma área maior que todo o território da França. Para os pesquisadores Claudia Azevedo-Ramos, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, e Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, a falta de projeto ou destino de uso faz com que estas áreas sejam “terra de ninguém”.
Eles tratam do tema em um artigo que sairá na edição de abril da revista científica internacional “Land Use Policy”, editada na Holanda. “Terra de Ninguém na Amazônia” é justamente o título do trabalho. Segundo Claudia, não há instituições públicas específicas conservando estas áreas.
Ela e Moutinho coletaram informações de 2016 do Cadastro Nacional de Florestas Públicas, elaborado pelo Serviço Florestal Brasileiro, órgão do Ministério do Meio Ambiente, e cruzaram com dados de 2017 sobre desmatamento organizados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
A Amazônia possui 287,6 milhões de hectares de florestas públicas. Os 70 milhões de hectares que não pertencem a unidades de conservação nem receberam destinação para o manejo sustentável representam 24,3%.
Para se ter uma ideia da grandeza da soma das florestas públicas desprotegidas na Amazônia, ela supera o tamanho da França e seus territórios ultramarinos (67,5 milhões de hectares), é maior que a região Sul do país (57,6 milhões) e que Minas Gerais (58,6 milhões).
O desmatamento avança
As “terras de ninguém” representam 14% de toda a Amazônia brasileira, que abrange 502 milhões de hectares. Com os dados do Inpe, os pesquisadores constataram a vulnerabilidade das florestas públicas sem proteção. Nada menos que um quarto de todo o desmatamento registrado na Amazônia entre 2010 e 2015, incluindo terras públicas e propriedades privadas, aconteceu dentro das áreas desprotegidas.
“As áreas não designadas pelo governo precisam de atenção. São muitos os desafios para manter a floresta em pé. Existe pressão de todos os lados: do agronegócio, da grilagem de terras, da especulação imobiliária e da exploração predatória de madeira”, diz a bióloga Claudia Azevedo-Ramos.
As dificuldades de sustentação destas atividades são, porém, tão grandes, diz a pesquisadora, que poucos envolvidos com elas conseguem se fixar na terra.
“Será que a gente precisa derrubar mais floresta e substituir por essas atividades econômicas que não são sustentáveis? A gente precisa escolher uma estratégia que corresponda à vocação da região, o que passa longe da conversão da terra em algo que não traz riqueza e melhoria de vida e não é acompanhada de infraestrutura para que as pessoas permaneçam na região”, prossegue.
Amazonas, o coração desprotegido
Há florestas públicas desprotegidas em todos os nove estados da Amazônia (Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). A maior parte está sob responsabilidade dos governos estaduais, mas também há grandes áreas federais.
O Amazonas é, disparado, o Estado com mais florestas públicas sem proteção: são 41,5 milhões de hectares, sendo 31,3 milhões estaduais e 10,2 milhões federais. “A responsabilidade do Amazonas é muito grande. Ele é peça-chave, é o coração da floresta, tem alta biodiversidade e altos estoques de carbono e água”, afirma a pesquisadora da Federal do Pará.
Na avaliação dos autores da pesquisa, não é necessário impedir todo o tipo de ocupação das florestas públicas. Para Claudia, o correto seria “estimular uma economia de base florestal”. “Uma área protegida de uso sustentável tem a vantagem de incluir pessoas, fomentar o uso econômico e ser mais bem aceita pelos estados, pelos municípios e pela sociedade do entorno.”
A própria exploração de madeira é possível, comenta a pesquisadora, desde que feita dentro das regras de manejo florestal e com baixo impacto. “É possível fazer exploração de madeira de forma que a floresta se recupere. Evoluímos tecnicamente e temos muitas possibilidades de ter uma economia florestal.”
Além disso, a bióloga defende a elaboração de um plano de desenvolvimento para a região, com investimento em tecnologia, voltado para agregar valor a produtos extraídos da floresta.
Para criar a proteção das florestas com agilidade, os pesquisadores propõem que os governos federal e estaduais destinem provisoriamente as áreas a determinadas instituições públicas até que uma análise abrangente aponte o uso mais adequado e definitivo delas. Segundo Claudia, a sinalização de que o governo está presente e cuida das florestas já ajuda a evitar a destruição.
Ministério diz que destinação de parte das áreas está definida
Procurado pela reportagem desde quarta-feira (7), o Ministério do Meio Ambiente informou somente na noite desta terça-feira (13) que 47,8 milhões de hectares tiveram suas destinações definidas, embora ainda não concretizadas. “A efetiva destinação, com transferência de responsabilidade, será finalizada a partir de ato da Secretaria de Patrimônio da União”, diz a pasta por meio de nota. Os órgãos que assumirão as florestas não foram informados.
“Ressaltamos que a agenda fundiária é complexa e vai muito além do mandato dos órgãos de meio ambiente”, afirma o ministério. A pasta coordena a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas Federais em parceria com a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário.
De acordo com o ministério, “10,6 milhões [de hectares] continuam em estudos e 3 milhões devem ser destinados no próximo termo de acordo a ser celebrado entre as instituições responsáveis”.
Também procurado desde quarta-feira passada, o governo do Amazonas não se manifestou. O Ministério Público Federal no Amazonas afirmou por meio de nota que um grupo de trabalho estuda “medidas a serem adotadas para garantir maior proteção a essas áreas”. O grupo é formado “por procuradores da República de diversos Estados brasileiros, incluindo o Amazonas”.