Emprego científico: crítica da traição pura

“A corrupção da cada governo começa quase sempre pela dos seus princípios”
Montesquieu

Apesar do frenesim propagandista do nosso ministro da Ciência e Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, a verdade é que, até à data, não concretizou coisa alguma. À sombra da memória de outrem, mas prenhe de promessas, em nove meses deu à luz a tentativa de “flexibilizar o emprego científico” pela criação de uma carreira paralela, pagando aos doutorados ainda menos que os seus subsídios de manutenção mensal, vulgo: bolsas. Esta carreira paralela seria de contratos a termo certo, que se teriam de ganhar, uns atrás dos outros, após concursos de datas sempre incertas, até, certamente, ao concurso para um contrato de reforma, a termo mais que certo.

Evidentemente que, tal como Montesquieu percebeu, «quando os princípios do governo estão corrompidos, as melhores leis tornam-se más». Consequentemente, o tom com que o ministro ameaçava, de peitos feitos, penalizar as instituições que não contratassem investigadores, inverteu-se por completo quando a Assembleia da República lhe votou a lei. Não a querendo cumprir na totalidade, passou a afirmar que a lei não é para ser vista como uma imposição mas como estímulo, um estímulo que não se pode obrigar as instituições a aplicar. Afirmação que deixa o seu primeiro-ministro, triste e ignorantemente, repetir na Assembleia, como se a lei a nada obrigasse. Mas a lei obriga! E, ainda que contratados a dois terços do salário da carreira — carreira essa que os reitores querem ver extinta —, embora executando as mesmíssimas funções, quando um contrato se renovar por seis anos, a instituição tem de abrir um concurso público para um contrato na carreira, e quem o ganhar poderá, quem sabe, chegar à mítica nomeação definitiva, se não se tiver entretanto finado.

As universidades, sempre na vanguarda, posicionaram-se logo no primeiro dia contra os seus investigadores, os seus bolseiros, a massa de gente que as constrói e sustenta, e contra o princípio básico que todo o trabalho, seja ele de investigação, de gestão de ciência, de docência ou técnico, merece um contrato, independentemente do grau académico de quem o executa ou do tempo em funções. Em março, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) declara que: “a missão das universidades pressupõe uma rotação elevada dos seus investigadores e bolseiros, o que exige uma formação especializada dependente de durações temporais elevadas, que não deverá ser confundida com necessidades permanentes.” A douta declaração não é apenas grave por as universidades se julgarem isentas de cumprir a lei. É-o porque demonstra que os nossos reitores não veem as universidades como instituições dedicadas à descoberta, à procura e disseminação do conhecimento, com liberdade académica e união entre investigação e ensino. Veem-nas como meras instituições de atribuição de graus — mediante pagamento de propinas, claro — e arrendamento de laboratórios, sem reação do Governo, nem desafetos do Presidente, que tacitamente sancionam o seu ato de pirataria concedendo-lhes carta de corso. Ato que a maioria dos colegas da carreira docente implicitamente também sanciona com o seu ensurdecedor silêncio, fingindo que esta questão nada lhes diz, esquecendo que se investigam e publicam conseguem-no graças ao trabalho dos bolseiros que estão por natureza arredados de um mísero contrato de trabalho. A esses, as palavras de Dante: “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.”

Aquilo a que estamos a assistir, por parte da tutela e dos nossos Magníficos Reitores, é à execução cuidadosa de um assédio criminoso, de mobbing, contra os bolseiros doutorados, que se veem, desde 1 de setembro de 2016, à média de um por dia, a ficar sem sustento enquanto há uma lei que não se cumpre. Após 30 meses de governação, não há ainda uma única universidade com um investigador já contratado pelo “diploma de estímulo ao emprego científico”. Mantendo permanentemente a promessa de um contrato no horizonte, essa linha imaginária que se afasta quando nos aproximamos, mantêm também os investigadores, tenham 25 ou 55 anos, a remarem infinitamente, mesmo que já sem bolsa, até que estourem, jamais chegando a parte alguma. Tendo já sido empurrada para 2019 toda a eventual concretização do que quer que seja e dado andarmos nisto desde 2016, conclui-se que só se cumprirá com os “5000 contratos para a ciência até ao final da legislatura” se esta não tiver fim.

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Contudo, embora notícia discreta, a 20 de abril foram aprovados na Assembleia da República diplomas dos PCP, CDS-PP, PSD e BE, relativos à prorrogação e renovação das bolsas dos doutorados que aguardam a abertura dos protelados concursos para as suas funções. Aprovados para que se transformem em lei tendo, até, o PS votado a favor dos projetos do PCP e do BE. Louvemos aqui a hombridade dos deputados do PS que reconheceram o fracasso do seu ministro e do seu Governo em levar as instituições a cumprirem a lei, reconhecendo também que a solene declaração de Manuel Heitor que nenhum investigador ficaria sem financiamento por não terem sido atempadamente abertos os concursos foi uma intrujice. Esperemos, agora, que esta aprovação parlamentar seja um ato sincero e não um ardil para protelar o processo até que a Norma Transitória da lei — a única que obriga verdadeiramente à contratação — caduque.

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Sempre incólume e alheio à realidade vai seguindo Manuel Heitor, ministro de concretização alguma, dizendo no passado dia 27 também ele ser um precário do Governo, mostrando-se assim genuinamente solidário com todos os bolseiros e demais trabalhadores precários. A sua declaração, insultuosa, talvez seja premonitória, mas quando sair do Governo regressará ao seu lugar de catedrático na universidade, onde passará, certamente, a ser solidário para com as vítimas da fome, porque também ele passou muita fominha depois do almoço, até chegar a casa para jantar. A todos, as palavras de Kant: “Quem faz de si verme não pode depois reclamar se o pisam.”

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