“E agora, o que vamos fazer? será que vou ser boa mãe? será que vou dar conta?”. Um misto de “alegria e medo” invadiu a educadora física Thays Bacchini, de 30 anos, quando descobriu que estava grávida. “Passa muita coisa na nossa cabeça”, diz ela, lembrando que a esse turbilhão de pensamentos se somou um bombardeio de “receitas” sobre a gravidez – que lhe diziam “para comer por dois, para ter sustança”, “para, pelo amor de Deus, parar de fazer exercícios até o bebê nascer”, entre outras coisas disparadas por todos os lados.
“Eu gosto de ouvir o que os outros têm a dizer”, observa Thays. “Mas as histórias precisam ter fundamento, porque assim como podem trazer leveza e ser um jeito de a pessoa se mostrar presente nesse momento, elas também podem gerar insegurança”.
Essa também é a análise de especialistas, que alertam para os potenciais efeitos de crenças e mitos para a mulher e o bebê.
As consequências, dizem, incluem estresse e situações que põem a saúde em risco. “Muitas dessas histórias deixam a mulher preocupada a gravidez inteira, cheia de fantasmas na cabeça”, frisa a ginecologista Mariana Maldonado, especialista em obstetrícia e sexualidade humana.
O que é mito?
“Histórias fantásticas” que têm como protagonistas deuses, seres sobrenaturais e heróis – como os gregos – ou “relatos passados de geração em geração dentro de um grupo”. No dicionário, essas estão entre as várias definições existentes para mitos.
Aos ouvidos das grávidas, é assim que muitos deles chegam e assumem ares de verdade – quando, na realidade, são histórias com significado deturpado ou sem fundamento que podem estar envoltas de perigos, observa o ginecologista e obstetra Domingos Mantelli, autor do livro Gestação – Mitos e Verdades sob o olhar do obstetra, que responde a cerca de 200 questões de pacientes nesse sentido.
A psicóloga especializada em psicoterapia para gestantes Flávia Alvares Fernandes diz que “quando a mulher tem mais acesso à informação e se informa pelas fontes certas, “fica mais tranquila diante do que ouve, mas se estiver insegura na relação com a gravidez a tendência é que superdimensione a questão”.
“A gestação já é um momento de conflitos nela e em que sofre diversas pressões. Os mitos potencializam isso”, diz.
No livro “O que é mito”, em que trata do tema de forma geral, o antropólogo brasileiro Everardo Rocha ressalta que o mito muitas vezes é rotulado como “mentira, cascata ou coisa irrelevante”, mas que “pode ser verdadeiro estímulo forte para conduzir tanto o pensamento quanto o comportamento do ser humano”. “Eles funcionam socialmente. Existem bocas para dizê-los e ouvidos para ouvi-los”.
A seguir, seis mulheres e especialistas entrevistados pela BBC Brasil apontam e ajudam a esclarecer os que são mais ditos e ouvidos pelas grávidas. A lista vai desde questões ligadas à alimentação, exercícios físicos, viagens de avião e parto, até sexo, exames e consumo de álcool.
“Comer por dois”, não. E fazer exercícios, sim, dentro dos limites
Para a paulista Thays Bacchini, a gravidez trouxe situações engraçadas, como premonições de que teria um menino por ter a “barriga pontuda” e um “teste dos talheres” para revelar o sexo do bebê.
Um garfo e uma colher escondidos embaixo de almofadas, nesse caso, indicariam menino e menina, respectivamente. Ela escolheu uma, sentou e encontrou o garfo. Deu menino outra vez, lembra.
Mas o sinal estava errado – já que é uma menina, Júlia, que ela vai ter – assim como estava a sugestão que ouviu para “comer por dois” nesse período. “Comer por dois não se indica nunca”, diz o presidente da Comissão de Assistência Pré-Natal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Olímpio Barbosa de Moraes Filho.
Em média, a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta o consumo de 2.500 calorias por dia – são 500 a mais que uma adulta não grávida – e há a recomendação de ganho de peso de cerca de 12 quilos, tendo em vista que excessos podem levar a doenças como hipertensão e diabetes. Mas “a dieta vai depender do peso e estatura da gestante”.
E o mais importante é “ter uma alimentação saudável, balanceada e com orientação”, complementa Domingos Mantelli.
Foi isso o que Thays buscou com a ajuda de uma nutricionista: uma gravidez saudável. Com o mesmo objetivo, decidiu manter a rotina de exercícios, mas não faltaram vozes contra.
“Foi com o que mais me bombardearam, até por eu trabalhar na área. E isso foi o que mais me irritou”, diz. “Não vai agachar, não pega esse peso. Você não pode fazer isso nunca mais até sua filha nascer”, era o que ouvia.
Educadora física e personal trainer pós-graduada em “atividade física adaptada e saúde para públicos especiais”, inclusive gestantes, a paulista sabia que eram mitos. Ainda assim, interrompeu a atividade até confirmar que estava tudo bem na gravidez e receber sinal verde da médica – “respeitando os próprios limites”.
Há um ano praticando Crossfit, Thays adequou o treino. Chegou a substituir corridas e saltos sobre caixas, por exemplo, por outros de menor impacto na bicicleta ou ainda na caixa, mas devagar, com um pé de cada vez.
A liberação para se exercitar e quanto ao tipo de exercício depende da condição da grávida, e não há uma restrição válida para todos os casos, segundo especialistas.
Em relação ao Crossfit, considerado de alto impacto, Domingos Mantelli admite que é mais “contraindicado” – mas que, assim como outras atividades “pode ser feito com orientações e se adaptado por um preparador físico”.
Modalidades como hidroginástica, natação, corrida e musculação são outras que cita entre as possíveis de serem praticadas, sempre com esses cuidados.
Exercícios ajudam a diminuir riscos como hipertensão, diabetes, prematuridade e complicações no parto. “Há muitas vantagens”, afirma Thays, que a atividade também lhe ajuda a preparar o corpo para o parto natural. “O exercício fortalece a musculatura, traz muita disposição, melhora dores, circulação, controla a ansiedade, ajuda a respirar melhor e controla a pressão”.
Andar a pé, de bicileta e de avião: Pode, se a gravidez vai bem
A brasiliense Patrícia Broda, 29, vai ter um menino, Victor. E o que mais ouviu foi “você vai ficar mais quieta, não é?”. O que significava não andar muito a pé, evitar a bicicleta e viagens de avião – na prática, uma grande mudança de rotina. O risco que apontavam era de aborto.
“Como minha gestação foi difícil de conseguir, as pessoas falavam muito em repouso, mas não tem nada que indique repouso quando se está bem”, diz. “Às vezes criam um estresse que não precisa, criam um monstro na cabeça da mulher”.
Patrícia mora na Dinamarca e engravidou por fertilização in vitro. Tal particularidade não implicou, porém, em restrições.
“Me certifiquei com o médico de que não teria complicação e então me senti livre para fazer o que quisesse, manter a rotina”.
E o que ela quis e fez foi manter essas atividades. Entre elas, viajar de avião para quatro países.
“Há pacientes que podem e outras que não podem voar”, diz o obstetra Domingos Mantelli.
Normalmente o embarque é permitido até o oitavo mês, mas a mulher precisa de autorização do obstetra além de apresentar atestados e documentos específicos para as companhias áreas analisarem se a viagem é possível – e, se for, se precisa levar um médico a bordo.
As regras variam pouco entre as empresas Latam, GOL, Azul, Avianca e a portuguesa TAP, consultadas pela BBC Brasil.
Mantelli observa que pelo risco de não haver estrutura de atendimento adequada a bordo ou em possíveis áreas de pouso, as viagens às vezes não são recomendadas. Se a gravidez envolver mais de um bebê ou se houver complicações médicas também pode haver restrições.
Patrícia viajou até o sétimo mês e conta que ela e o bebê estiveram bem.
“Minha única preocupação era ‘meu Deus, que horas vão servir o lanche’?”, brinca.
Sushi, caranguejo e camarão: Com cuidados
Lidar com a gravidez, no começo, foi difícil para a fotógrafa natalense Elisa Elsie, de 33 anos. “Eu estava numa fase incrível da minha carreira e sabia como seria a rotina. É uma questão de vida, muda tudo. A relação do casal, você tem alguém dependente de você 24 horas, o trabalho e os estudos precisam esperar”, diz ela. “Contei para minha família com quase cinco meses e publiquei a primeira foto grávida com quase seis”.
Além de ter de aprender a lidar com a nova realidade, ela acabou chegando a uma outra conclusão: “Parece que mulher é domínio público. Todo mundo tem um pitaco, uma sugestão, uma dica”.
Elisa “não dava muito espaço para isso”, mas não escapou do bombardeio que chegava na ponta da língua de bocas alheias e que iam desde “é melhor não dirigir nem andar por aí sozinha”, até “você não devia estar andando com essa barriga de fora! A cidade está cheia de mosquito!”, apontando o risco de contrair alguma doença. “Eu falei que estava de repelente e continuei andando”, diz ela.
“Sempre estava de barriga de fora, porque era verão e eu estava me achando linda!”.
O que ela “passou a gravidez inteira ouvindo”, entretanto, foi para comer bem e muito para alimentar o bebê” e não só isso. “Alguém comentou também que eu não poderia comer frutos do mar ou crustáceos”, diz. “Só que não resisti às ostras e comi caranguejo”.
Temendo “contaminação na carne”, o que ela evitou foi sushi cru, alimento que não é, entretanto, proibido, diz Mantelli. Mas que exige cuidados.
Ele explica que o grande mito nessa questão é que o peixe cru transmita toxoplasmose, uma doença infecciosa que pode passar da mãe para o feto. Mas o peixe cru não transmite toxoplasmose. O risco, na verdade, é que a grávida sofra alguma infecção ou intoxicação alimentar, como qualquer outra pessoa, se o peixe estiver estragado. E complicações se estiver contaminado por mercúrio.
O atum, por exemplo, tem alta concentração desse metal e, por isso, especialistas não recomendam o consumo mais do que duas vezes ao mês. O excesso pode prejudicar o desenvolvimento do cérebro do bebê, podendo gerar problemas auditivos, de aprendizado e de visão, por exemplo.
“Mas dizer que a grávida não pode comer sushi é mito”, reforça Mantelli, frisando a necessidade de atenção ao frescor do peixe e à higiene da cozinha onde é preparado.
O NHS, sistema público de saúde do Reino Unido, acrescenta: “Tudo bem comer peixe cru ou levemente cozido em pratos como sushi quando se está grávida, desde que qualquer peixe selvagem, cru, usado para fazer isso tenha sido congelado primeiro”.
A precaução é necessária para matar vermes parasitas que ocasionalmente existem nesses peixes e podem causar doenças.
Para ostras, camarões e caranguejos, a recomendação é ingeri-los cozidos, pelo risco de haver intoxicação alimentar se a carne estiver crua.
Elisa, que não abriu mão das iguarias, afirma que “era libertador” manter a rotina, inclusive em relação à comida, sem dar ouvidos ao que ouvia sem fundamento. Ela vai além: “Não basta só a mulher estar bem informada. Toda a rede de apoio dela precisa também”.
Parto normal ou cesárea: O primeiro é mais recomendado
Em Brasília, a arquiteta, fotógrafa e empreendedora Ana Karla Veloso “sempre teve na cabeça que parto normal era melhor e que a cirurgia era só para emergência”. A percepção estava certa, segundo o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Diversas histórias, porém, lhe empurravam para a cirurgia.
“Talvez você não aguente a dor” se o parto for normal e o bebê já “está meio pesado” para nascer assim, por exemplo, se somaram a outras que leu na internet. “Eu chorei no consultório da médica”, lembra Ana. “Pedi pelo amor de Deus que não fizesse cesárea se não fosse necessária”, diz ela. E não fez. As duas filhas, Cecília, agora com 5 anos, e Olívia, de 1 ano e meio, nasceram de parto normal.
“Mas já vi vários casos de pessoas que queriam parto normal e acabaram na cesárea. Há muitas histórias e elas podem enfraquecer até as pessoas mais seguras”, diz a fotógrafa, hoje também doula e cofundadora da Rede Ocitocina, que oferece apoio físico e emocional a mulheres e familiares antes, durante e após o parto.
“Me atentei sobre o sistema quando minha irmã foi empurrada para uma cesárea sem grandes explicações”, afirma.
O Brasil tem uma das mais altas taxas de cesáreas do mundo. Um projeto coordenado pela ANS, o Hospital Israelita Albert Einstein e o Institute for Healthcare Improvement, com o apoio do Ministério da Saúde, tenta evitar justamente isso.
A iniciativa estimula o parto no tempo certo e não o pré-agendado e recomenda a adoção de políticas para que quando houver a necessidade de cesárea ela seja justificada e os riscos para a mulher e o bebê claramente explicados.
Riscos
“Há riscos nos dois tipos de parto, mas a cesárea traz mais riscos de complicações para a mãe e o bebê quando feita desnecessariamente”, diz Moraes Filho, da Febrasgo.
Com base em artigos científicos, a ANS observa que a chance de morte da mãe é três vezes maior nesse procedimento do que no parto normal.
O estudo Caesarean Delivery and Postpartum Maternal Mortality (Cesariana e Mortalidade Materna Pós-Parto, em tradução literal), publicado em 2016 por pesquisadores ligados à Fundação Oswaldo Cruz e a universidades francesas, identificou que isso ocorre principalmente por hemorragia pós-parto e complicações da anestesia.
A pesquisa analisou casos de mulheres que deram à luz em hospitais públicos ou mistos em oito Estados do Brasil e morreram até 42 dias depois disso – desconsiderando as que tiveram na ocasião mais de um bebê e aquelas cuja causa da morte foi alguma condição presente antes do início do trabalho de parto.
O fato de a mulher estar sujeita a uma recuperação mais lenta e dolorosa, quando submetida à cirurgia, é outra das desvantagens que a ANS aponta.
A partir de um outro estudo publicado em 2017, a agência observa que cesarianas eletivas – aquelas agendadas antes do trabalho de parto, em bebês de 37 e 38 semanas, e especialmente em mulheres de baixo risco – aumentam a chance de morte, internação em UTI e problemas respiratórios no recém-nascido, bem como de atraso no aleitamento materno, por exemplo.
O objetivo, diz a ANS, é reduzir ainda mais a proporção de cesáreas.
Com o projeto Parto Adequado, cujas ações são previstas até maio de 2019 junto a 129 hospitais, sendo 29 públicos, e 65 operadoras de planos de saúde, essa proporção, segundo a agência, caiu de 79% para 63% entre 2014 e 2016.
Os partos normais, ou vaginais, que eram 21% do total, viraram 37%.
Entre as razões para o alto índice de cesáreas, estudos apontam que está a crença de que será um parto mais cômodo e sem dor, ao contrário do parto normal. “Mas é mito dizer que todo parto normal é doloroso, é generalizar demais”, diz a médica Mariana Maldonado. “A dor é extremamente subjetiva. Algumas pessoas sentem mais, outras menos. E há técnicas e anestesia para abrandá-la”.
Sexo e exames também são cercados de dúvidas
Fazer ou não sexo grávida, segundo a especialista, é outra questão cercada de mitos. É comum dizerem que é melhor não fazer.
“Há quem pense que o pênis pode ir tão fundo na penetração a ponto de machucar o bebê, mas não é verdade. Ele está protegido no útero”. Se a gravidez é saudável, sem ameaça de aborto, de parto prematuro ou sangramentos, não há razão para restringir e o sexo faz bem, diz.
O fato de as pessoas generalizarem quando não deveriam, segundo ela, atrapalha. “Uma gestação não é igual à outra e para estabelecer se determinado caso se aplica a sua a mulher deve conversar com o médico, sem ter vergonha de perguntar. E ele deve estar disposto a ouvir e a acolhê-la”.
Outras questões são apontadas por Olímpio Filho, da Febrasgo. Uma diz que “o exame Papanicolau – que previne o câncer de colo de útero – não deve ser feito porque pode provocar aborto”. O que não tem fundamento, assegura. Outra aponta que exames de raio-x podem causar malformação no bebê. “Mas precisaria de uma quantidade muito grande de radiação para isso e não é o caso”, complementa Mantelli.
Riscos de malformação e outros problemas existem, diz ele, se a grávida ingere bebidas alcoólicas. “Tem gente que acha que beber só uma tacinha ou copo não tem problema. Mas faz mal, sim. Não tem dose segura de álcool na gravidez”.
“O mais importante é viver esse momento”
Nos Estados Unidos, o “É preciso comer por dois” é apontado por uma americana como “o maior mito de todos” em um fórum na internet sobre o assunto. Outra conta ter ouvido que “desejar demais” ou não satisfazer certos desejos por alimentos poderia causar marcas de nascença ou fazer mal ao bebê. Já no Uruguai, a jornalista Ana Pais, de 32 anos, ouviu que não deveria tomar banho de mar nem de piscina – o que Mantelli aponta como mito – e estava com espinhas no rosto quando lhe disseram que “vai ter menina, porque quando é menina ela rouba a beleza da mãe”. Ela está grávida, porém, de um menino, Teo, e ouviu do médico que as espinhas se deviam a hormônios.
“Eu sabia que não tinha fundamento, mas fiquei em choque. Como alguém pode dizer uma coisa dessas?”, disse à BBC Brasil. “Quando você está grávida é como se abrisse uma porta para as pessoas lhe dizerem o que quiserem. E aí falam abertamente se você está magra, gorda, feia, como essa mulher me disse”.
A economista Victoria Zorrilla, de 34 anos e também uruguaia, teve um sentimento parecido quando engravidou. O mito que “perturbou”, disse à BBC, foi o de que “não deveria ganhar mais de 1 quilo por mês”.
“Acredito que você deve cuidar de si mesmo e comer de forma saudável, mas o foco não deve ser apenas no número em uma balança”, frisa. “Cada mulher é diferente e ter um padrão ajuda, mas acredito que não deve ser algo obsessivo”, acrescenta ela, mãe de Matias, prestes a completar 2 anos. O mais importante se a gravidez está bem, resume, “é se livrar de todas as pressões desnecessárias e viver esse momento”.