Não há dúvida de que a corrupção é um dos grandes males do País, há muitos anos. Também não há dúvida de que a Operação Lava Jato e suas congêneres, que vêm expondo de maneira crua a pilhagem do Estado por quadrilhas políticas e empresariais, contribuíram decisivamente para que os brasileiros se dessem conta do tamanho do problema e nutrissem verdadeira ojeriza pelos corruptos. No entanto, a luta contra a corrupção e as denúncias produzidas quase diariamente pela vanguarda dessa campanha acabaram por sequestrar a agenda nacional, de tal modo que os eleitores parecem hoje incapazes de refletir sobre os problemas do País sem vinculá-los de alguma maneira à corrupção – que, como consequência, se tornou a medida de todas as coisas.
Esse fenômeno ficou espantosamente claro em uma pesquisa nacional do Instituto Ipsos Public Affairs a respeito da reforma da Previdência. De acordo com o levantamento, 75% dos entrevistados consideram que “o maior problema da Previdência é a corrupção no sistema, que desvia seus recursos”. Apenas 15% entendem que o maior entrave do sistema previdenciário “é o modo como ele foi pensado e também o envelhecimento da população”.
Ou seja, a maioria dos brasileiros, a julgar por essa enquete, acredita que o galopante déficit da Previdência não existiria se não fosse a corrupção.
A resposta revela um grau tão absurdo de desconhecimento da realidade que só se pode concluir que os brasileiros em geral estão mesmo convencidos de que a corrupção é a fonte deste e de qualquer outro mal que assole o País.
Como mostram os dados publicados regularmente pelo governo e pela imprensa há muito tempo, a Previdência é deficitária porque o brasileiro se aposenta cedo demais e porque não há contribuintes em número suficiente para sustentar a aposentadoria de uma massa crescente de beneficiados – tudo isso sem mencionar privilégios desmedidos concedidos a determinados grupos.
Nada disso obviamente é fruto de corrupção, e sim de um sistema disfuncional construído a partir de deliberações conscientes dos representantes do povo, tudo com amplo respaldo democrático. Ao atribuir a “corruptos” um problema que é, em grande medida, dos próprios eleitores – a escolha de candidatos de triste fama –, os entrevistados parecem ter encontrado uma maneira de transferir sua responsabilidade cidadã a terceiros, devidamente caracterizados como ladrões de dinheiro público. Ou seja: se não fosse a corrupção, tudo funcionaria bem.
Basta notar que, para 51% dos entrevistados, o modelo de Previdência atual “é sustentável, ou seja, pode continuar da mesma forma por muitos anos”. E, mais espantoso ainda, 52% dos entrevistados com curso superior entendem que o sistema vai bem e não precisa mudar. Ou seja, não se pode alegar ignorância, pois se supõe que os entrevistados nessa faixa socioeconômica tenham amplo acesso às informações necessárias para embasar sua opinião.
Assim, fica muito claro que uma parte considerável dos brasileiros, inclusive os supostamente mais esclarecidos, está convencida de que é a corrupção que inviabiliza o País, e não as escolhas malfeitas, tanto nas urnas como na administração do Estado. Não é uma situação de todo surpreendente, ante a desmoralização completa da política em razão do denuncismo que tão bem caracteriza o trabalho de uma parte da força-tarefa da Lava Jato e que ganha manchetes escandalosas dia e noite.
A transformação da corrupção em régua que mede todos os recantos da vida nacional, conveniente tanto para os jacobinos que pretendem destruir a política tradicional como para os eleitores que preferem respostas fáceis para problemas difíceis, está na raiz da indisposição generalizada no Brasil com tudo o que diz respeito ao governo, aos políticos e às próximas eleições – decisivas para o futuro do País. Sempre que os brasileiros foram às urnas para eleger não um presidente da República, e sim um campeão contra a corrupção – Jânio Quadros e Fernando Collor, por exemplo –, os resultados foram nada menos que desastrosos. Mais do que nunca, é preciso impedir que a histeria anticorrupção governe o País.