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Em briga de marido e mulher devemos, sim, meter a colher

Por POR MARIELA MONI

Em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a Lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, em referência e homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, que durante 23 anos de casamento sofreu violência. A história dela, já nacionalmente conhecida, vale e precisa ser relembrada no dia de hoje.

No ano de 1983, Maria foi acordada com um estouro no quarto. Tentou se mexer mas não conseguiu. Havia sido baleada. Vítima de um assalto, foi o que lhe disseram. Após as incertezas e aflições do tratamento, Maria viveu, porém, perdeu a mobilidade dos membros inferiores.

Retornou para casa, em cadeira de rodas. Foi, então, novamente vítima. Dessa vez, eletrocutada no chuveiro. Mas não seria o bastante. Maria agarrou-se novamente à vida. Sobreviveu e descobriu mais tarde que era o seu próprio marido o responsável pelas tentativas de homicídio. A partir disso, passaram-se cerca de duas décadas para responsabilizá-lo criminalmente pelas tentativas de homicídio.

O caminho foi árduo. Maria teve de recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, buscando a responsabilidade do Brasil pela negligência e omissão na demora das investigações e do processo judicial para responsabilização do agressor.

Maria lutou, lutou mais um pouco, lutou muito e venceu. Em 1996, veio a condenação de seu agressor. Desde então, é ícone nacional, símbolo da luta contra a violência doméstica, exercendo ativamente esse papel.

A Lei 11.340 não apenas criminalizou a violência contra a mulher, mas se tornou imprescindível instrumento de transformação social

A história de Maria da Penha não é isolada, infelizmente. Os números são alarmantes. No Brasil, a cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física e verbal. A cada 6.9 segundos uma mulher é vítima de perseguição. A cada 2 minutos uma mulher é vítima de arma de fogo. A cada 1.4 segundos uma mulher é vítima de assédio. Os dados são do Relógios da Violência, criado pelo Instituto Maria da Penha.

A Lei 11.340 não apenas criminalizou a violência contra a mulher, mas se tornou imprescindível instrumento de transformação social ao longo de seus doze anos de existência. De natureza híbrida, abrange tanto aspectos penais quanto cíveis, trazendo amplo espectro de providências imediatas para garantia de proteção física e emocional. Não há dúvidas de que ela traz importantes ferramentas para frear a violência contra a mulher.

Vale lembrar que o Brasil é ainda signatário da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (1994) e da Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, no âmbito da ONU (1979).

Mesmo assim, diante de instrumentos convencionais e legais de combate à violência, o Brasil ocupa o 5.º lugar no ranking mundial de homicídios de mulheres, de acordo com o Mapa da Violência elaborado pela ONU, em 2015. É emblemático que, apesar de leis vigentes e de ampla discussão, o Brasil ainda protagonize números elevadíssimos de agressão contra a mulher.

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O pior é que este tipo de violência é majoritariamente invisível, silencioso e amplo, congregando aspectos físicos, patrimoniais, sexuais, psicológicos e morais. Nenhuma mulher escolheu viver o relacionamento familiar abusivo, que vai além da relação marido e mulher, companheiro e companheira, se estendendo também para a relação com filhos, netos e demais familiares.

É importante que todos nós entendamos o ciclo da violência doméstica, já que a informação é sempre uma grande aliada à prevenção. O ciclo é composto por três fases: tensão, violência, arrependimento ou comportamento carinhoso.

Na primeira fase (tensão), o agressor mostra-se incomodado e irritado por coisas insignificantes, o que faz com que ele humilhe a vítima e também faça ameaças e até destrua objetos dentro de casa. É a típica fase de “pisar em ovos” e buscar evitar qualquer comportamento que possa irritar o agressor.

Em geral, a mulher busca negar o que está acontecendo, escondendo dos familiares e amigos, e buscando justificativas para aquele comportamento ríspido, chegando ao ápice de culpar a si própria pela situação.

A segunda fase (violência) corresponde à explosão do agressor. Toda a tensão acumulada na primeira fase se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. É nesta fase que muitas mulheres exteriorizam a violência sofrida e denunciam. Felizmente!

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Por fim, na terceira fase (arrependimento), também podendo ser chamada de “Lua de Mel”, o agressor se arrepende de tudo, tornando-se amável e carinhoso para buscar uma reconciliação. Nesta fase, há o estreitamento da relação de dependência e de vitimização, tendo em vista que é só uma questão de tempo para o retorno do ciclo e da primeira fase.

Milhares de mulheres estão aprisionadas neste ciclo, que pode durar dias, meses ou anos. O enfrentamento da violência contra a mulher é contínuo e de responsabilidade de todos nós, homens e mulheres. É por isso que eu sempre digo que em briga de marido e mulher devemos, sim, meter a colher, se verificados indícios de que ali se propaga a violência.

Saber identificar o ciclo, acolher a vítima e demonstrar existir um caminho de libertação mediante acionamento dos órgãos responsáveis, como a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Delegacia de Polícia e os Cras e Creas, pode definir se essa mulher vive ou entra para as trágicas estatísticas nacionais e internacionais.

O combate à violência contra a mulher não se exaure em leis, embora sejam um importante instrumento de garantia de direitos. A luta de Maria da Penha é nossa. Lute e lutemos pela liberdade e pela vida.

Mariela Moni Tozetto, defensora pública do Paraná e diretora da Associação dos Defensores Públicos do Paraná.
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