Senado argentino rejeita legalizar aborto; projeto só poderá ser reapresentado daqui um ano

Após uma sessão que começou às 9h30 da manhã de quarta-feira (8) e se encerrou somente às 2h44 da madrugada desta quinta (9), o Senado da Argentina rejeitou projeto que propunha a legalização do aborto no país, por 38 votos a 31. Foram registradas uma ausência e duas abstenções.

Para avançar, era necessário que a maioria simples, 37 dos 72 senadores, tivesse aprovado o projeto.

Com a rejeição da proposta, a legislação do país segue como está: o aborto é crime e pode ser punido com até quatro anos de prisão. As exceções são gravidez decorrente de estupro, ou quando a mãe corra risco de morte.

Agora, o projeto só poderá ser reapresentado para apreciação dos legisladores argentinos daqui um ano.

Há porém, uma alternativa diante da vitória do “não”: os senadores que defendem a legalização podem pedir o debate da iniciativa da parlamentar Lucila Crexell (MPN), que despenaliza o aborto até a 12ª semana de gravidez. Lucila foi uma das senadoras que se absteve na votação desta quinta.

Imagem: Natacha Pisarenko/AP

Festa e resignação

Com o resultado, os grupos denominados “pró-vida”, que adotaram lenços azuis como símbolo contra o aborto, festejaram com fogos de artifício. Os grupos feministas, com lenços verdes a favor da legalização, mantiveram silêncio e resignação.

Famílias e clérigos usando bandanas azuis festejaram do lado de fora do Congresso quando o resultado foi anunciado pouco antes das 3h da manhã, balançando bandeiras da Argentina em apoio ao posicionamento da Igreja Católica contra o aborto no país natal do papa Francisco.

“O que essa votação mostrou é que a Argentina ainda é um país que representa valores de família”, disse a ativista antiaborto Victoria Osuna, de 32 anos, à Reuters.

Defensores do direito ao aborto, carregando bandanas verdes que se tornaram um símbolo do movimento, ocuparam as ruas da cidade até o fim da votação, apesar de forte vento e chuva. Muitos acamparam em frente ao Congresso desde a noite de quarta-feira.”Ainda estou otimista. Não foi aprovado hoje, mas será aprovado amanhã, será aprovado no próximo dia”, disse a defensora do direito ao aborto Natalia Carol, de 23 anos. “Isso não acabou”.

Houve protestos após a votação e confronto com a polícia. Revoltados, alguns manifestantes pró-aborto lançaram garrafas, pedras, paus e até coquetéis molotov contra o cerco policial. As tropas de segurança reagiram com jatos d’água e bombas de gás lacrimogêneo. Houve correria pelas ruas adjacentes ao Congresso.

Projeto foi aprovado na Câmara de Deputados

Aprovado em 14 de junho em votação apertada na Câmara de Deputados do país, por 129 votos a favor, 125 contra e uma abstenção, o projeto ganhou resistência principalmente de setores ligados a igrejas. O papa Francisco se pronunciou publicamente contra.

A proposta rejeitada hoje propunha incluir o aborto nos serviços da saúde pública argentina, oferecido de forma gratuita e sem necessidade de maiores justificativas. Como limitante, não seria permitido realizar aborto após a 14ª semana de gravidez.

A campanha pelo aborto foi marcada por grande polarização na sociedade argentina. Movimentos estudantis e feministas organizaram diversas passeatas às vésperas da votação na Câmara de Deputados, em junho, e fizeram do verde um símbolo do direito de interromper a gravidez. Em resposta, setores religiosos organizaram marchas com o azul-celeste, da bandeira argentina, pedindo defesa das duas vidas – a da mãe e a da criança.

Se tivesse sido aprovada, a Argentina se tornaria o terceiro país da América Latina a permitir a interrupção voluntária da gravidez, depois de Cuba e Uruguai.

O aborto também é legal na Cidade do México e é permitido na maior parte dos países latino-americanos – incluindo o Brasil – em caso de risco para a vida da mulher, quando é resultado de um estupro ou quando há inviabilidade da vida extrauterina. Por outro lado, é totalmente proibido em El Salvador, Honduras e Nicarágua. ]

Lenços azuis “pró-vida”

Depois de ficarem num segundo plano durante o debate na Câmara de Deputados, em que a legalização do aborto foi aprovada por 129 deputados e rejeitada por 125, organizações civis e religiosas passaram à ofensiva durante o debate no Senado.

Incentivados pela Igreja com homilias e missas, milhares de manifestantes foram às ruas. A presença dos lenços azuis contra o aborto na Praça do Congresso mais do que duplicou em comparação com o número visto durante o primeiro debate em junho. Desta vez, houve uma forte presença de ônibus do interior em sintonia com o voto negativo de senadores de províncias mais conservadoras, onde a Igreja tem forte influência.

No lado esquerdo da praça, predominavam famílias e mulheres acima de 35 anos. Havia maior presença de homens e de jovens ligados a grupos religiosos.

“Para mim, é uma questão de vida ou de morte. Tão simples quanto isso. Para mim, existe vida a partir da concepção. Portanto, interromper uma gravidez é matar o ‘bebê’ que já tem vida e que vai nascer nove meses depois”, diz à RFI Ezequiel López, 48 anos.

Mas, e para os casos de uma gravidez não desejada ou de casos aberrantes? “É preciso acompanhar a mulher grávida. Se ela não quiser o bebê, pode ser dado em adoção, um ponto que precisa ser melhor regulado na Argentina. Muitas famílias estão dispostas a adotar”, argumenta, ciente de que a vitória sobre o aborto é apenas momentânea.

“É um triunfo momentâneo até que, dentro de dois anos, volte a ser tratado. As pessoas que continuam com isso na cabeça vão insistir. Talvez a discussão só termine se for rejeitado num plebiscito”, aponta Ezequiel.

“Acreditamos que a vida é o primeiro direito humano básico que deve ser respeitado. Todos os demais direitos subordinam-se a esse primeiro”, define Sofia Venegas, 36 anos. “Um bebê, seja na semana 12, 14 ou 16 de gestação, tem o mesmo direito. A única diferença é que não pode expressá-lo”, compara esta mãe de três filhos pequenos.

“Ninguém aqui pensa que seja fácil para uma mulher manter uma gravidez não desejada, mas também sabemos que é uma tragédia abortar com implicações em síndromes, traumas e transtornos. A mulher sempre será mãe por mais que tenha abortado”, acredita esta psicóloga.

“Não podemos aceitar a falência do sistema de saúde, aprovando uma lei abortiva. Precisamos de um sistema de saúde que funcione e todos temos de trabalhar, lenços azuis e verdes, em erradicar a pobreza mais do que em legalizar o aborto”, indica a professora Carolina Bonorino, 39 anos, mãe de quatro filhas pequenas.

Lenços verdes pelo aborto legal, seguro e gratuito

Embora a presença dos lenços verdes duplicasse a dos lenços azuis, a quantidade de manifestantes não foi superior àquela observada em junho. Uma maioria de mulheres com menos de 30 anos, simpatizantes ou militantes de grupos feministas, ocupava também as ruas adjacentes ao Congresso.

“Cheguei a esta luta a favor do aborto através do feminismo. No começo, eu não era a favor. A minha causa era contra a violência de gênero. Aos poucos, no entanto, eu fui entendendo”, conta à RFI a joalheira e estudante de artes visuais Helena Vega, 24 anos.

“O aborto é uma realidade e, por mais que não tenha sido aprovado agora, vai continuar a acontecer. Esta lei que rejeitaram só permitiria que fosse feito de forma segura e gratuita para aquelas que não podem pagar”, lamenta. “Mas não é um balde d’água fria porque houve um avanço. Nunca antes chegamos a esta instância. Agora está na agenda. Temos de continuar trabalhando”, confia.

“A legalização é para que mais mulheres não continuem a morrer se não quiserem ser mães ou se não puderem. É para que não sejam julgadas por isso”, defende a estudante Anabela Pavía, 27 anos.

“Foi uma vitória ter chegado até aqui. O movimento feminista gerou consciência. Esta derrota nos dá mais força para continuar a luta. Esta é uma onda que só tende a crescer”, avisa.

Pelo lado masculino, o economista Federico Masri, 33 anos, vê na luta pelo aborto um aspecto da luta pela igualdade de direitos.

“Tudo o que favorecer a igualdade de direitos numa sociedade desigual parece-me melhor. No caso do aborto, toda a responsabilidade e a pena da lei recaem sobre a mulher. Isso é injusto”, observa.

“A legalização é uma questão de tempo”, aposta Federico. “Nas sociedades em que o aborto tornou-se legal, foram caminhos construídos com o tempo, como no caso do Uruguai”, compara.

O Uruguai, onde o aborto é legalizado, passou por uma rejeição semelhante. A legalização uruguaia foi aprovada pela Câmara de Deputados em 2002, mas rejeitada pelo Senado dois anos mais tarde. Em 2008, ela foi aprovada, mas vetada pelo presidente Tabaré Vázquez, um médico oncologista.

Somente em 2011, no governo de José Mujica, o Senado deu meia sanção à legalização que se tornou completa em 2012, com a aprovação da Câmara de Deputados. (Com Reuters e RFI)

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