O que leva dois paulistanos a fazer pesquisa de campo em saúde no Acre, vencendo mais de 4.000 km de distância a partir da Cidade Universitária? Em primeiro lugar, o interesse pelas condições de vida e saúde das populações amazônicas, expostas a uma ampla gama de doenças tropicais e outros agravos nutricionais ainda pouco caracterizados. Em segundo lugar, a oportunidade, que veio com Pascoal Torres Muniz, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac). Pascoal, um baiano que adotou e foi adotado pelo Acre, é um dos pioneiros da pesquisa em saúde pública no Estado.
Pouco depois de concluir seu doutorado, na Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP), Pascoal obteve, no início dos anos 2000, recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para realizar inquéritos populacionais de saúde e nutrição infantil em municípios do interior do Acre. Até aquele momento, só havia dados relativos à capital, Rio Branco, o que limitava o planejamento de ações de saúde voltadas às crianças do Estado.
Acrelândia e Assis Brasil, dois pequenos municípios do Vale do Rio Acre, foram os alvos dos primeiros inquéritos. O primeiro, junto à fronteira com a Bolívia e os estados do Amazonas e Rondônia, foi um típico polo de atração de migrantes do Sul e Sudeste do País. Assis Brasil, junto à fronteira com o Peru, era um antigo município que emergia de seu relativo isolamento geográfico com a pavimentação da Estrada do Pacífico — que se inicia em Rio Branco e cruza a Amazônia, passando por Assis Brasil e os Andes peruanos até o litoral. No início dos anos 2000, Acrelândia tinha outra característica relevante: era o município acriano com maior incidência de malária, associada à abertura de diversos projetos de colonização em sua zona rural.
Doze anos de trabalho contínuo atraíram a Acrelândia, no extremo ocidental do Acre, um grande contingente de estudantes de graduação e pós-graduação e de pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados em diferentes aspectos de saúde infantil e malária.”
A convite de Pascoal, participamos do planejamento do trabalho de campo ao longo de 2002. Em janeiro de 2003, docentes e alunos de pós-graduação da Ufac e da USP iniciaram as atividades de pesquisa — exame físico e laboratorial, com assistência médica e orientação nutricional, de todas as cerca de 800 crianças entre zero e cinco anos de idade residentes na área urbana dos dois municípios.
Este é o marco inicial do seguimento das crianças de Acrelândia ao longo dos próximos dez anos, por equipes das duas universidades. Iniciamos com estudos sobre epidemiologia da desnutrição, anemia e deficiência de ferro em pré-escolares, resultando em dissertações de mestrado e teses de doutorado de alunos da USP e docentes da Ufac. Diante de diferentes distúrbios nutricionais prevalentes nessa população, decidimos prosseguir o seguimento dessas crianças, com envolvimento de vários alunos de iniciação científica e de pós-graduação. Organizamos então o ACTION (ACre nutriTION) Study Team. Investigamos entre outros desfechos o perfil de crescimento infantil e risco para distúrbios metabólicos na idade escolar, tema do doutorado direto de Bárbara Hatzlhoffer Lourenço, atualmente docente do Departamento de Nutrição da FSP/USP.
Na zona rural de Acrelândia, município criado em 1992, situa-se parte do Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Pedro Peixoto, o segundo maior projeto de colonização agrícola da Amazônia brasileira. Entre as principais dificuldades enfrentadas pelos colonos, estava a malária — mais especificamente, a chamada malária de fronteira agrícola, que assola as áreas de floresta recém-ocupadas, sujeitas a um rápido processo de mudança ambiental que favorece o contato entre os migrantes recém-chegados, desprovidos de imunidade, e os mosquitos vetores da malária. Acrelândia era, no início dos anos 2000, o principal foco de transmissão de malária no Estado. Em uma parte do PAD Pedro Peixoto conhecida como Granada, nome do antigo seringal situado naquelas terras, iniciamos em 2004 os estudos da USP sobre malária no Acre.
Doze anos de trabalho contínuo atraíram a Acrelândia, no extremo ocidental do Acre, um grande contingente de estudantes de graduação e pós-graduação e de pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados em diferentes aspectos de saúde infantil e malária. Dezenas de projetos de pesquisa em Acrelândia receberam apoio financeiro nacional (CNPq, Ministério da Saúde e Fundação de Amparo à Pesquisa – Fapesp) e internacional (principalmente dos National Institutes of Health-NIH, dos Estados Unidos). A casa amarela, uma construção térrea em um terreno com pés de cupuaçu, jambo, acerola e coco dourado que mantivemos nesse período, hospedou boa parte do pessoal envolvido em pesquisa. Os trabalhos laboratoriais foram realizados em um laboratório mantido pela USP e Ufac na Unidade Mista de Saúde, um pequeno hospital mantido em Acrelândia pelo governo estadual.
Em 2010, estendemos o trabalho de campo sobre malária para o Remansinho, outro antigo seringal, bem mais distante — a cerca de 100 km de Acrelândia, incluindo 40 km de terra, com acesso bem difícil na estação chuvosa. Situado no Estado do Amazonas, Remansinho era uma área de ocupação muito recente, que sofria com epidemias de malária e total falta de infraestrutura em saúde. Em parceria com as equipes locais de gerência de endemias, aprendemos inúmeras lições sobre a malária em assentamentos agrícolas da região.
Caracterizamos fatores de risco para a infecção e a doença e testamos novas estratégias de diagnóstico e controle da infecção. Estudamos outras doenças febris agudas, especialmente as arboviroses, e algumas doenças ainda mais negligenciadas prevalentes na região, como a toxocaríase e a mansonelose. Acima de tudo, testemunhamos o progressivo controle da malária nas áreas de estudo, fruto dessa parceria com as equipes locais. Hoje, Acrelândia e seu entorno são áreas de baixa transmissão de malária, restrita a alguns focos residuais na zona rural.
A malária permanece como um grave problema de saúde pública; Cruzeiro do Sul, com 80.000 habitantes, foi até 2016 o município brasileiro com maior número absoluto de casos de malária.”
Enquanto a malária parecia sob controle em Acrelândia, desde 2005 o extremo ocidental do Estado, o Vale do Juruá, sofria uma grave epidemia da doença, que atingia populações urbanas e rurais. Em parceria com colegas da Ufac e da Fiocruz, em 2010 iniciamos a montagem de laboratórios de pesquisa em Cruzeiro do Sul, a principal cidade do Vale do Juruá. Transferimos progressivamente nossas atividades de pesquisa em saúde infantil e malária no Acre para Cruzeiro do Sul, que serve como a principal base de operações na região desde 2015.
Que desafios nos esperam em Cruzeiro do Sul? Trata-se, em primeiro lugar, de uma região historicamente isolada do restante do Estado; até a década passada, a rodovia de ligação a Rio Branco, com 700 km, mantinha-se intransitável durante a estação chuvosa, aproximadamente seis meses por ano. A malária permanece como um grave problema de saúde pública; Cruzeiro do Sul, com 80.000 habitantes, foi até 2016 o município brasileiro com maior número absoluto de casos de malária.
Em 2014, a taxa de mortalidade infantil registrada no município foi de 12,11 óbitos por mil nascidos vivos (IBGE 2017). A parceria iniciada com o professor Pascoal se estende agora ao Campus da Floresta da Ufac em Cruzeiro do Sul, com a colaboração de novas gerações de docentes: Rodrigo Medeiros de Souza, Bruno Pereira da Silva e Ana Alice Damasceno. Os projetos de pesquisa da USP em andamento em Cruzeiro do Sul e região, centrados em diversos aspectos da saúde infantil e do controle da malária, estão documentados em série recente de artigos publicados no Jornal da USP sob a responsabilidade da jornalista Valéria Dias e ilustrada por fotografias de Cecília Bastos.
Os 15 anos de trabalho de pesquisa no Acre resultaram em mais de 80 publicações científicas, 17 dissertações de mestrado (duas delas defendidas no exterior) e 16 teses de doutorado. Uma delas, defendida em 2009 por Mônica da Silva Nunes (atualmente docente da Ufac), recebeu o Prêmio Capes de Teses no ano seguinte. Multiplicaram-se nesses anos as colaborações de pesquisa, que hoje envolvem três dezenas de instituições nacionais e estrangeiras e mais de uma centena de estudantes, pós-doutorandos e investigadores que trabalharam na área por alguns dias até vários anos consecutivos.
Consolidou-se a parceria com a Ufac e as equipes locais de saúde, tornando a USP uma importante interlocutora para a elaboração de políticas públicas e projetos de pesquisa na região, contribuindo para a formação de recursos humanos e o desenvolvimento técnico-científico na Amazônia na justa devolutiva à sociedade brasileira. Acima de tudo, esses anos proporcionaram a alunos e investigadores da USP uma experiência única de convívio com realidades sanitárias e sociais distintas e com uma população fraterna, de que guardamos todos as mais gratas recordações.