20 de abril de 2024

Opinião: “Autoritarismo, democracia e eleições”

Há trinta anos que pesquisamos e analisamos no Núcleo de Estudos da Violência, NEV/ USP, os processos na sociedade brasileira que geram a violência nos seus mais diversos aspectos. Na década de 1980, quando esse Núcleo surgiu, havia um forte entusiasmo e otimismo diante da transição democrática, após 20 anos de ditadura militar. A retomada do governo civil trouxe a esperança de que os graves problemas que afetavam a população —autoritarismo, desigualdade, discriminação, racismo— seriam superados. A Constituição de 1988, sem dúvida, condensou as expectativas de construção de uma sociedade menos violenta, mais justa, democrática, graças também à renovação das instituições do Estado.

Estudante perseguido por policiais durante a ditadura/Foto: Reprodução

Muitas das pesquisas que desenvolvemos visaram as violações de direitos dos cidadãos, especialmente os negros, os jovens, as mulheres, os mais pobres, praticadas pelo próprio Estado — como as execuções sumárias, a tortura, os maus tratos nas prisões, as políticas públicas precárias para a imensa maioria constituída pelas brasileiras e brasileiros, sobretudo negros e pobres. Sempre defendemos que o aperfeiçoamento da democracia seria incontornável para conter a violência presente na sociedade e sobretudo a perpetrada pelo Estado. No entanto, durante décadas o aperfeiçoamento da democracia pareceu se limitar ao processo eleitoral, não incorporando na cidadania plena os negros e os pobres. Somente a partir dos anos 2000, vinte milhões de brasileiros foram finalmente retirados da pobreza extrema.

Tem sido flagrante a resistência à assimilação de práticas e rotinas democráticas pelas instituições, essenciais para o funcionamento da democracia (especialmente o poder judiciário, o ministério público, a polícia), decisivas para garantir o tratamento justo e igualitário dos cidadãos perante a lei, bem como a não discriminação dos negros, dos indígenas e de gênero.

No interior daquelas instituições, infelizmente ainda grassam o elitismo, o nepotismo, os cambalachos políticos, a seletividade nos procedimentos, a aversão às auditorias externas e a falta de transparência. Esses são alguns traços evidentes do ralo compromisso que essas instituições públicas tiveram e têm com o sistema democrático.

Como aprofundado em diversas pesquisas no Núcleo, aqui predomina um autoritarismo socialmente implantado —com raízes mais profundas do que as práticas determinadas pelas ditaduras de 1937 e de 1964— inscrito numa grande continuidade que marca a sociedade brasileira diretamente dependente dos sistemas de hierarquia implantados pelas classes dominantes brancas e reproduzido regulamente pela violência ilegal do Estado. Se desde a transição democrática a representação das classes populares através de eleições se ampliou, as relações de poder entre as classes sociais, fundadas no racismo estrutural, na desigualdade e na violência ilegal do Estado, não se alteraram.

Não surpreende, portanto, vermos surgir na atual campanha eleitoral concepções autoritárias e extremistas que oferecem soluções simplistas para nossos graves e complexos problemas sociais, sobretudo aqueles relacionados à violência. É extremamente preocupante para a nossa democracia que tais ideias, envoltas na apologia da violência, elogio da tortura e de torturadores, na incitação ao fuzilamento de opositores, com aquiescência por vezes das autoridades judiciais, encontrem ressonância entre muitos eleitores. Retomar, nesse pleito presidencial, a defesa da cidadania e dos direitos humanos é não só a única opção democrática possível como uma escolha histórica na direção da civilização e não do retorno à barbárie da ditadura de 1964.

Paulo Sérgio Pinheiro é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 2002-2003, no governo FHC.

Marcos César Alvarez é vice-coordenador do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP e professor Livre-docente do Departamento de Sociologia da USP.

PUBLICIDADE
logo-contil-1.png

Anuncie (Publicidade)

© 2023 ContilNet Notícias – Todos os direitos reservados. Desenvolvido e hospedado por TupaHost