Ao lado de ‘Dragon Ball’, ‘Os Cavaleiros do Zodíaco’ é um dos animes de maior sucesso no Brasil. Durante as décadas de 80, 90 e até 2000 era comum ver grupos de crianças sonhando em ser cada um dos cavaleiros, mas sempre havia um estigma quando se tratava do Shun. Com uma armadura rosa e gestos delicados, o personagem por vezes era visto de forma pejorativa e quem era fã acabava zoado da mesma forma.
Esses aspectos têm relação com a armadura de Shun, inspirada na constelação de Andrômeda, que por sua vez tem o mesmo nome da figura mitológica. Nessa história, Andrômeda era uma princesa muito linda, atributo que incomodou Poseidon, que exigiu o sacrifício da jovem. Acorrentada para morrer, ela foi salva por Perseu, que se tornou seu marido. Muitas dessas características estão em Shun: as correntes que relembram o sacrifício e a própria personalidade amável do garoto.
Assim, quando o novo anime de ‘Os Cavaleiros do Zodíaco’ anunciou que Shun é agora Shaun, uma amazona de bronze, era de se imaginar que essa seria uma mudança positiva, adaptando o gênero do personagem que, para muitos, deveria ter sido uma mulher desde o começo. Mas há vários problemas nessa mudança e o primeiro deles é a justificativa oficial.
O roteirista Eugene Son (que deletou o seu perfil no Twitter após a polêmica) fez um grande texto na rede social para justificar a mudança e vários pontos mostram como a decisão foi tomada pelos motivos errados. Segundo ele, seria muito estranho em 2018 ter uma equipe de cavaleiros totalmente masculina. Até aí tudo bem, mas Son diz que não seria possível criar uma personagem nova, que ficaria destacada e óbvia. Isso seria o caso se essa amazona fosse mal escrita e feita somente para suprir algum tipo de expectativa. Da forma como Son coloca parece apenas preguiça, já que se a história fosse bem trabalhada para apresentar a nova e inédita personagem, ela poderia até mesmo se tornar um tipo de Ikki de Fênix: aquele personagem que não necessariamente faz parte do grupo dos cavaleiros, mas aparece eventualmente para ajudar.
Além disso, se Eugene Son não queria criar uma personagem feminina nova porque ela chamaria uma atenção desnecessária apenas por seu gênero, o plano saiu totalmente errado ao mudar Shun: quando o trailer foi divulgado, esse era o maior assunto entre os fãs e não porque Shaun mostrou ter uma personalidade forte e vários poderes: todo o foco foi para a mudança de gênero e no quanto isso foi feito de forma forçada. Não aprovar essa transformação não tem qualquer relação com os fãs “tradicionais” de ‘Os Cavaleiros do Zodíaco’, que não aceitam alterações no material original. Trata-se apenas de perceber que a representatividade de verdade é feita sem anular o que já era positivo antes.
A maior qualidade de Shun no anime original é que ele tinha um papel muito importante dentro do grupo dos Cavaleiros de Bronze. O personagem costumava repetir que não gostava dos conflitos e dos comuns derramamentos de sangue das guerras santas. Ele lutou quando necessário e derrotou muitos inimigos, mas não via prazer no sofrimento alheio. Isso também levava Shun, que já foi descrito como um dos cavaleiros mais poderosos, a ocultar sua verdadeira força e precisar de ajuda. A brincadeira com o pedido de ajuda ao irmão mais velho, Ikki, é um exemplo disso. Quando precisava elevar seu cosmo, Shun era realmente poderoso, mas muitas vezes optava por não seguir esse caminho.
Esse contraponto era um dos elementos enriquecedores de ‘Os Cavaleiros do Zodíaco’. Seiya agia 100% com a emoção e sem pensar nas consequências, Hyoga e Shiryu eram mais maduros e traziam discussões interessantes para os conflitos e Shun estava no meio deles para mostrar que não é necessário ser a figura clássica de masculinidade para ser poderoso. Ele pode não admirar a guerra e ainda assim cumprir seu dever como um dos protetores de Athena. Tirar essa discussão do novo seriado o deixa menos interessante e mostra que os criadores tentaram “conversar” com a nova geração, mas fizeram isso de forma completamente equivocada. O Shun original carregava consigo representatividade porque certamente haviam fãs que se identificavam com seus trejeitos e discurso.
Se os argumentos de Eugene Son fossem realmente fortes, ele poderia ter mudado o gênero de qualquer outro personagem. Imagine uma jovem amazona que ainda lamenta a morte da mãe e faz disso sua motivação? Uma guerreira com uma tatuagem de dragão nas costas que consegue até mesmo mudar o curso de uma cachoeira? Ou até, imagine só, mudar o gênero do protagonista, mostrando uma amazona de Pégasus completamente destemida e dedicada a defender Athena? Ao escolher Shun para encaixar uma chamada “representatividade”, Son deu razão à todas as chacotas a que o personagem foi alvo durante os anos e declarou que sim, se alguém é delicado e sensível, só pode ser uma mulher, eliminando qualquer complexidade não apenas da identidade de gênero, mas da humanidade dos personagens.
Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco estreia na Netflix apenas em 2019 e resta aos fãs esperar para ver como Shaun será, de fato, apresentada. Talvez ela seja uma personagem incrível, com poderes e habilidades únicas que a farão realmente especial no grupo dos cavaleiros. Por enquanto, ela parece apenas uma “equivalente de Shun” que não cumpre o papel de representatividade e ainda fica no lugar de um dos personagens mais marcantes entre os Cavaleiros de Bronze.