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Opinião: “Crime sem processo no Brasil?”

Por POR GUSTAVO SCANDELARI

Em seu discurso de posse como ministro da Justiça e Segurança Pública, em 2 de janeiro, Sergio Moro afirmou que, dentre outras medidas para combater a criminalidade, proporá ao Congresso a adoção do plea bargain – também conhecido como plea agreement ou plea deal (algo traduzível como “pleito de barganha” ou “pedido de acordo”) –, “para que a Justiça possa resolver casos criminais nos quais haja confissão”. Trata-se, em linhas gerais, de instituto estrangeiro (especialmente norte-americano) pelo qual o acusado pode reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão de seu direito a um processo e ao consequente julgamento judicial para receber, desde logo, uma pena. A principal vantagem ao jurisdicionado é a possibilidade de que a sanção seja menor que a que seria aplicada caso houvesse sentença após a produção de provas. É, no fundo, uma análise de riscos similar à que ocorre nos non-prosecution e deferred prosecution agreements (sobre os quais não se discorre aqui).

Os presentes comentários devem ser lidos com a ressalva de que não houve a divulgação de maiores detalhes sobre como funcionaria tal mecanismo na visão do ministro, já que a proposta legislativa ainda será enviada ao Congresso. Por isso, trata-se do assunto em perspectiva.

Os defeitos que a mudança possivelmente traria não justificam a permanência do atual sistema criminal brasileiro.

O plea bargain se insere no contexto da chamada justiça penal negocial. Nosso ordenamento contempla há anos a possibilidade de acordos que dispensam o processo – por exemplo, para crimes leves, que normalmente seriam julgados perante o Juizado Especial. Medidas terapêuticas para usuários de drogas também evitam o prolongamento da discussão perante a Justiça e, no Paraná, a Resolução 4/15 dispõe sobre a justiça restaurativa, difundindo práticas consensuais de solução de conflitos criminais.

Acordos já têm sido feitos até mesmo em sede de ações de improbidade, como evidencia a Resolução 179/17 do CNMP. Após o advento da Lei 12.850/13, o Brasil assistiu ao uso, por parte das defesas de vários brasileiros em casos distintos, da colaboração premiada. A Operação Lava-Jato, por exemplo, revelou que, pela primeira vez, o poder público conseguiu reaver quantias extraordinárias das mãos de criminosos poderosos, graças aos termos negociados por seus representantes com as autoridades.

A justiça negocial, em sede criminal, veio para ficar. Que surja a ideia do plea bargain para o Brasil, então, é algo natural. Aliás, ela nem sequer é nova. O projeto do novo Código de Processo Penal (PL 8.045/10) traz algo semelhante, com a imediata aplicação de pena se cumpridos alguns requisitos em proposta conjunta da acusação e da defesa, sendo que a decisão homologatória teria natureza de sentença condenatória.

Há críticas tanto na literatura norte-americana quanto na brasileira. As principais são: réus pobres não teriam condições de arcar com bom advogado para fazer acordo justo; a acusação poderia ameaçar com imputações desproporcionalmente graves para coagir a defesa a um acordo ruim; o modelo afastaria a população do Judiciário. Essas críticas já são de conhecimento da Suprema Corte norte-americana, a qual tem recomendado cautela às autoridades. E tem mantido o seu uso.

No Brasil, os mesmos problemas poderiam surgir. Todavia, nenhum sistema de justiça criminal é perfeito. É notório que, entre nós, tais defeitos inclusive já existem: condenações injustas, acusados mal defendidos e denúncias ineptas, lamentavelmente, são comuns há muito tempo. O que se busca com a inovação é resolver outro mal crônico: o altíssimo custo público e social com um número excessivo de processos. Segundo pesquisa do CNJ, o Poder Judiciário brasileiro teve taxa anual de cerca de 4% de crescimento desde 2011, sendo que, em 2017, custou mais de R$ 90 bilhões. Boa parte desse custo advém dos mais de 80 milhões de processos atualmente em trâmite e sem perspectiva clara de encerramento. Deles, 94% estão em primeiro grau, precisamente a instância em que ocorreria o acordo (Justiça em Números, 2018, p. 56, 73 e 197).

Ou seja, os defeitos que a mudança possivelmente traria não justificam a permanência do atual sistema criminal brasileiro, que obriga à litigiosidade exacerbada em centenas de milhares de situações que poderiam ser rapidamente encerradas de forma satisfatória para as partes. Por ora, não há razões fortes o suficiente para que se impeça o avanço dessa proposta e a instauração dos indispensáveis debates.

A maior ou menor qualidade do novo sistema dependerá de sua redação legislativa. Neste ponto, devemos aprender com erros passados e os dos estrangeiros: favorecer negociação com réus soltos ou em medidas cautelares, pela reiteração dos requisitos da preventiva; garantir pleno acesso da defesa aos elementos acusatórios; permitir aplicação direta também de penas alternativas; restringir o regime fechado para hipóteses socialmente recomendáveis; incluir práticas restaurativas; assegurar homologação e revisão judiciais; exigir análise da viabilidade da acusação previamente à formação do acordo; e prever possibilidade de sanção ético-profissional aos negociantes são algumas possibilidades para otimizar o ambiente convencional e o seu resultado.

Não se trata, portanto, de simples importação. Até porque isso não seria possível, tão grandes são as diferenças socioeconômicas e jurídico-culturais entre o Brasil e os Estados Unidos. Trata-se de criação de um instituto novo. O primeiro passo para isso é a utilização do vernáculo, batizando-o de acordo com a nossa realidade: pedido de acordo, proposta de aplicação imediata de pena ou acordo de não persecução penal (como consta da Resolução 181/17 do CNMP) parecem aproximar mais o povo do significado da lei.

Gustavo Scandelari é advogado, doutorando e mestre em Direito e professor de Direito Penal no Unicuritiba e em cursos de pós-graduação.

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