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A guerra está em todos os lugares e um país inteiro cai na depressão

Por POR ANTONIO ALVES

Mais lágrimas

Comecei um novo texto, com um tom poético e um sentimento mais tranquilo, para desfazer um pouco a tristeza do texto anterior. Avancei com muita dificuldade pelos primeiros parágrafos, a poesia se esquivando, um pesar renitente insistindo em ficar. Melhor resvalar para a política, pensei, comentar as miudezas e quinquilharias do varejão populista… Deixei para a manhã do dia seguinte, mercê do sono e do cansaço. A desgraça acordou antes de mim, nas duas horas do fuso, e atacou em uma escola de São Paulo. Não consegui escrever nada, mais um dia, e se o faço agora é desistindo de qualquer poesia, mesmo necessária.

Justamente nesse dia, eu estaria de coração aberto pelos 83 anos de nascimento de minha mãe, a professora Lindaura, de saudosíssima memória para tantos quantos conheceram aquela pessoa tão boa, especialmente os que tiveram a sorte de trabalhar ou estudar numa escola dirigida por ela. Sangue nos corredores de uma escola, a morte se espalha pelo Brasil inteiro. Minha mãe ficaria triste, se ainda estivesse na Terra. Que a Mãe de todas as mães a abençoe e console, no Céu. Que haja um lugar de paz, no outro mundo, para as crianças e educadores assassinados.

Aqui, neste mundo, estamos em guerra. E o pior, todos contra todos. É verdade que às vezes se distinguem grupos que se acham opostos e pensam (ou querem nos fazer pensar) que a guerra é entre eles. Mas a guerra é entre nós e dentro de nós. É claro que existem idéias e discursos, que justificam práticas e atitudes, algumas mais responsáveis pelo conflito, outras nem tanto. Também havia segmentos diferentes e idéias divergentes em todas as civilizações e impérios que já se ergueram e se extinguiram desde o último dilúvio. Achavam-se importantes, mas, vistos de longe… nem são vistos. Também são insignificantes, em outra escala de tempo, os conflitos de hoje num país periférico, entre grupos definidos por alguns retalhos ideológicos ou pela lealdade a algum “macho alfa” que cultuam como líder iluminado. Moscas, no monturo da humanidade.

Professores e crianças são importantes. Escolas ainda são importantes. O que acontece nelas é a gestação de uma parte considerável do futuro. Olhando para elas, dá pra vislumbrar o mundo daqui a algum tempo. Todos alimentamos algumas esperanças quando nossas crianças vestem um uniforme e vão para “a aula”. E hoje, com as trincheiras e combates dentro das escolas, nossas esperanças se reduzem a quase nada, os sinais do futuro são desanimadores e a barbárie se anuncia inevitável. Sei que esta é a hora em que a gritaria é maior e a maioria se esforça para apontar culpados. Mas há quem prefira perguntar, silenciosamente: o que ainda se pode fazer?

É como andar no tabocal arriado, não tem trecho bom. Não sei se provisória ou definitivamente, não podemos contar com o Estado, que, da cintura para cima, está ocupado pelos grupos mais nefastos -situação que não é inédita, obviamente, mas piorou ao ponto de poder ter chegado à casa do sem-jeito. A parcela melhor informada e organizada da população, até um dia desses conhecida como sociedade civil, também está paralisada por uma enorme confusão mental e emocional, atravessada por conflitos, fragmentada pela multiplicação de mentiras e discursos de ódio. Seus quadros dirigentes nas últimas décadas burocratizaram-se ou se aposentaram, em sua maioria capturados por um humanismo que envelheceu ou envileceu no poder que obteve ao fim de cada guerra do século 20. Os novos ativismos, ambientais e culturais, não tiveram tempo de dar dois passos no novo século, foram massacrados ainda na chocadeira do mundo digital pela extrema agressividade das máquinas de defesa do sistema -atacados ou seduzidos pela direita e pela esquerda.

Restam poucos e com poucos recursos nos empreendimentos sociais, incluindo Educação. Servem de semente, vamos ser otimistas. A maior probabilidade é de que a barbárie cresça e tenhamos outro dilúvio, mas há quem viva sob um imperativo ético descrito na parábola do semeador, para lembrar de uma história tão conhecida e pouco compreendida. Estou só começando a pesquisar, muita coisa se acha na internet mas é preciso olhar com cuidado porque a propaganda tornou-se a arma do negócio. De todo modo, o caminho para a cura de um pais que está em depressão passa pela formação de novos coletivos, diferentes dos grupos hoje existentes, na linguagem e no sentimento, no modo de organizar-se e nos propósitos.

Tivemos clube, bairro, vila, igreja, uma variedade de ambientes de formação. Hoje temos redes sociais, em que se exibem as coisas mais sublimes e as mais miseráveis. Ainda estamos engatinhando, no desenvolvimento de novas formas de sociabilidade (menos ou mais pacíficas) neste milênio ainda indecifrável. Espero sinceramente que não, mas talvez, infelizmente, estejamos perdendo as escolas.

Os justos

Existem bons projetos de pequenos grupos e comunidades, empreendimentos familiares, iniciativas pessoais boas e sustentáveis. Muitas dessas pessoas “do bem” são professores, lutando para que suas escolas não afundem na lama da violência. Gente simples, que mantém as coisas funcionando e segura as pontas. A quem se pode creditar a salvação do mundo, como no poema de Borges, se é que ainda posso me dar o direito de encerrar com poesia.

“Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o mundo.”

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