Trinta anos de mesmice
Revejo a cena armazenada no baú da minha memória. Anos 80 do século passado, verão de fumaça em que não se via o sol e os aviões ficavam até três dias sem pousar por causa das queimadas, uma fila infinita de caminhões com toras de madeira saindo mundo afora, seringueiros e índios correndo para escapar do fogo e da bala. Uma reunião de madeireiros com dirigentes do governo e dos órgãos de fiscalização, num hotel no centro da capital do Acre. Um rico madeireiro se levanta para falar e reclama da resistência dos acreanos contra o progresso que ele vinha trazer: comecei no Paraná, mas levei o progresso para o Mato Grosso, depois para Rondônia e agora estou vindo para o Acre, mas se não quiserem, vou investir no Tocantins ou em outro lugar que dê melhores condições -dizia, balançando cordão e pulseiras de ouro como um famoso personagem de novela.
Trinta anos depois, o enredo é o mesmo, embora tenham mudado algumas personagens, falas e adereços. Mudou também a atitude do governo: o daquela época era acovardado e oportunista, encenando resistência à invasão para não perder o eleitorado, mas de olho nos possíveis negócios com os tão esperados “investidores”; já o governo atual é corajosamente direto em seu apoio aos salvadores que vem de fora.
Os dirigentes políticos locais, executivos e legislativos, estão dizendo uma coisa muito simples: não vão cumprir nem exigir o cumprimento das leis ambientais. Acham que essas leis são empecilhos ao progresso e um amontoado de exigências descabidas dos ecologistas opressores contra a esforçada “classe produtora”, que é o nome moderno para o que antigamente se chamava de patrão e fazendeiro. Tem até um personagem que ficou famosíssimo nos últimos anos, o pequeno produtor rural impedido de tirar uma palha para cobrir sua casinha, oprimido pelos fiscais ambientais com multas exorbitantes que não tem condições de pagar. Apesar de famoso, nunca vi tal personagem. Já aquele também famoso patrão que toca fogo na floresta, vende madeira ilegal, desmata margem de rio e muitos etecétaras, esse na realidade não existe -meus olhos é que mentem.
Tudo isso é parte da velha guerra ideológica, a campanha política que não termina depois das eleições, a batalha das imagens em que cada um precisa de um inimigo malvado e horroroso para se apresentar como o defensor da verdade e da justiça. Vale para todo tipo de assunto: reforma da previdência, juros bancários, petróleo, tecnologia… principalmente propriedade de terra e uso dos recursos naturais. Todo grupo precisa de uma ideologia para justificar seu negócio e tirar do caminho outros grupos que sejam concorrentes ou contrários. E todo grupo precisa cobrir sua ideologia com as capas da ciência e da tecnologia, da lógica e da razão. Os contrários é que são fanáticos, irracionais.
Tive uma particular discordância com o ex-senador Jorge Viana na época em que ele estava ajudando a fazer esse novo Código Florestal, com facilidades para a “produção” das quais os ruralistas, ao invés de lhe agradecerem, ainda reclamam. Uma dessas facilidades foi a redução dos limites das áreas de proteção permanentes nas margens dos rios. Eu não entendia, e ainda não entendo, como uma coisa dessas pode ser objeto de “consenso” político. Ora, se podemos constatar cientificamente que este rio precisa de cem metros de vegetação nativa nas margens, para não nos arriscarmos a provocar catástrofes na cheia ou na seca, como podemos submeter isso à negociação para estabelecer 80 metros ou 50 ou seja lá quantos forem necessários para pacificar políticos e proprietários do mundo?
Hoje as coisas estão ainda mais difíceis, pois os adeptos da teoria da terra plana assumiram o governo federal. Agora os cientistas que alertam para o aquecimento global é que são acusados de fanatismo delirante, suas pesquisas e estudos são desacreditados e descritos como uma conspiração comunista internacional para impedir o progresso do Brasil etc. etc. Uma conversa técnica e racional sobre qualquer assunto que envolva o meio ambiente está se tornando impossível.
Por isso gostei das posições do diretor do Instituto de Mudanças Climáticas, Carlito Cavalcanti, e do especialista em agronegócio João Shimada, que fez palestras e deu entrevistas no Acre há alguns dias. Posso discordar de alguns pontos, ter dúvidas em outros, mas vi neles disposição para um diálogo objetivo, sem ranço ideológico. O próprio governador do Estado, no discurso em que ameaça seu secretário para agradar à platéia ruralista, reconhece que os grãos do agronegócio podem ser plantados no Acre sem ser necessário “desmatar árvores” (expressão ruim, mas fácil de entender).
Ora, se não vai ter devastação e a nova grande produção rural pode ocupar áreas já “abertas”, caem para quase zero os tão alardeados empecilhos da legislação. E mais: as grandes empresas do agronegócio não terão nenhuma necessidade de financiamento do estado, facilidades fiscais, assistência técnica gratuita e mais outros tantos etecéteras, não é mesmo? Ou será que aí está, oculto, o caroço do angu? Diz o secretário estadual do agronegócio que o dinheiro do estado vai para quem precisa, os pequenos produtores. Se ele diz, como posso duvidar?
Entretanto, vou aguardar os resultados práticos para vaiar ou bater palmas. Já vi o governo Dantas vender o Acre como um Sul sem geadas e um Nordeste sem secas. Mesquita falava em uma nova classe média rural. Nabor disse que o Acre era o filé da Amazônia. Jorge usou a palavra florestania para agradar à platéia internacional. Tião rimou com industrialização. E todos, absolutamente todos, deixaram como resultado prático menos de dez por cento do que anunciaram.
Então, daqui a três anos, quando estiverem na campanha contra e a favor do governo do agronegócio salvacionista, conversaremos com informações, números e resultados. Até lá, tudo é ideologia. E posso continuar achando que a minha é melhor que as outras.
No final das contas, toda essa discussão fica parecendo um planejamento para ocupar a superfície da lua. Porque na terra acreana tem gente que precisa de soluções reais para os problemas reais que vive. Como resquício dos seringais falidos, das estradas e ramais de poeira e e lama, dos fracassados projetos de colonização dos anos 70 e 80, das comunidades ribeirinhas abandonadas, temos 40 ou 50 mil famílias lutando pra viver na terra, sem contar as 60 aldeias indígenas maiores ou menores espalhadas em todos os rios, a maioria no vale do Juruá. Técnicos ou políticos que não sabem achar o caminho de casa se forem soltos bem aqui na beira do Riozinho do Rola dificilmente conseguirão convencer toda essa gente a entrar numa nave espacial para um futuro no qual o dinheiro vai brotar no chão para ser colhido às toneladas e guardado no paiol.
Pra tudo, o acreano diz assim: só vou vendo.
Apois.