Abandonada há três décadas em área que foi explorada por garimpeiros em Roraima, aeronave que pertenceu a uma estatal e a uma empresa do ex-governador mineiro Newton Cardoso hoje não é de ninguém.
A magnitude da mineração ilegal na Amazônia sempre levantou a suspeita de que, escondido atrás dos pobres garimpeiros em condição de escravidão, há um grande capital, capaz de financiar a operação e concentrar as riquezas geradas, mas discreto o bastante para não deixar rastros. E, para agir com tanta desenvoltura, provavelmente sancionado ou associado ao poder público.
A prova incômoda dessa presença está aterrissada no fundo do mato (nem tão) virgem em que nasceu Macunaíma, “herói de nossa gente”. A poucos metros do murmurejo do rio Uraricoera, há 30 anos um avião vem sendo engolido pela floresta. A vegetação sobe, cresce em volta e dentro dos mecanismos da aeronave abandonada. Um arbusto atravessa a asa, de onde saem fios elétricos que se enroscam e confundem com trepadeiras que descem até o chão, como se fossem uma única meada.
Os índios da comunidade de Waikás, no extremo Norte do Brasil (a 6 km da fronteira da Venezuela), riem ao falar do avião “esquecido” no meio da mata. Olham para o interlocutor com o ar maroto, de quem conta uma história absurda sabendo que o outro não há de acreditar.
Parece mesmo uma peça pregada pelo “herói sem nenhum caráter”, que, no famoso romance, Mário de Andrade fez nascer exatamente aqui. Até o general Gustavo Henrique Dutra, responsável pela operação que reduziu o garimpo no segundo semestre do ano passado, se surpreendeu ao seguir os passos indicados pelo repórter e encontrar a aeronave encravada na selva como um monumento incômodo.
Foi um jovem líder da comunidade quem se ofereceu para levar o repórter ao local onde há três décadas o mato esconde o grande avião. Aos 38 anos, Júlio Davi Magalhães Rodrigues, seu nome completo, é fluente em português, que aprimorou ao cursar gestão territorial indígena na Universidade Federal de Roraima.
Ele era criança nos anos de maior atividade garimpeira, quando o governo de José Sarney (1985-1990) nomeou Romero Jucá como presidente da Funai —o ex-senador por Roraima decidiu liberar a mineração e a extração de madeira em áreas indígenas.
Júlio não consegue esquecer aquela invasão de estranhos e barulhentos, mudando rapidamente o mundo de seus pais e avós, como ele vai contando enquanto andamos pela pista de pouso de Waikás e, depois, ao entrar na floresta às suas margens. De repente, ele para e se volta para trás, como esperando a surpresa.
No primeiro momento, eu ainda não conseguia notar o grande vulto por trás do verde da mata. Mas, em seguida, ao fixar a imagem, a reação é de um grande susto. É inacreditável ver engolida pela natureza uma aeronave de dez metros de comprimento, 15 metros de envergadura e 4 metros de altura. É um avião para nove passageiros, além dos pilotos.
São cerca de quatro toneladas de metal submetidas ao tempo, em uma espécie de vingança do meio ambiente contra os garimpeiros que usavam aquele bimotor turboélice Queen Air para explorar ilegalmente o ouro da Terra Indígena Ianomâmi, no final da década de 1980.
Na fuselagem branca, que hoje parece cinza, ainda se pode ler o pequeno logotipo da empresa Embratáxi e o grande prefixo PT-KKJ. Papa-Tango-Kilo-Kilo-Juliet, na linguagem dos controladores de voo, foi engolido pela floresta.
Aquele período foi o fundo dos infernos para os índios. O pequeno aeroporto de Boa Vista (RR) chegou a ter 450 aeronaves operando diariamente para o garimpo. Era o ouro que ia e o abastecimento que vinha, quase sempre por via aérea, por causa das dificuldades de navegação no labirinto de ilhas que marca esta altura do rio Uraricoera.
Havia cinco trabalhadores ilegais para cada índio. Enquanto extraíam toneladas de ouro, 40 mil garimpeiros deixavam toda sorte de doenças. A praga mais danosa foi a malária, que dizimou grande parte da população de pouco contato e baixa resistência aos males dos brancos.
A atividade produziu destruição ao cavoucar as margens dos rios para obter o ouro, e, para separá-lo da areia, os mineiros ilegais poluíam os detritos com mercúrio, causador da terrível “doença de Minamata”, que gera deformações nos fetos. Dos 8.000 ianomâmis e ye’kwanas da época, cerca de 1,2 mil (15%) morreram em cerca de três anos.
Índios e índias assistiam a tudo impotentes, às vezes colaborando com os garimpeiros em troca de pequenos pedágios ou serviços, como auxiliares na mineração e prostituição. Os moradores dessa região têm mercúrio no corpo muito além dos limites toleráveis, como revelou um estudo da Fiocruz, em 2015.
O impacto daqueles anos deixou em Júlio Ye’kwana, como também é conhecido, e sua geração a consciência de que era preciso dominar a língua e a cultura dos brancos —aprender a enfrentá-los em seu campo.
Não é por outra razão que ele e outros membros da comunidade exibem diplomas universitários. Osmar Carlos da Silva, outro morador de Waikás, tem mestrado em antropologia no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde foi orientando do paulista Carlos Fausto (filho mais novo do historiador Boris Fausto).
Outros ye’kwanas trabalham para a Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) como agentes de saúde, profissão em que se destacaram como ótimos microscopistas durante a luta contra a malária transmitida pelos garimpeiros, nos anos 1980 e 1990.
Naqueles tempos, a pista de pouso aberta pela Funai perto de Waikás foi dominada por garimpeiros, que se aproveitavam da leniência do poder público para usar a infraestrutura como se fosse sua. Chegaram a instalar uma pequena vila de casas, a apenas algumas dezenas de metros da comunidade indígena.
Segundo Júlio, no início de 1990, o Queen Air PT-KKJ da Embratáxi (Empresa Brasileira de Táxi Aéreo) pousou e, depois de descarregar encomendas para os garimpeiros, apresentou defeito durante a decolagem e abortou a manobra com violência. Uns metros a mais, teria caído na curva do rio onde termina a pista.
Como tinha sofrido avarias, o avião foi empurrado para uma clareira ao lado da pista, onde ficou esperando conserto. Nada. Depois de alguns dias, mecânicos não tinham conseguido corrigir os problemas. Os responsáveis pelo avião tiraram seus equipamentos mais caros e os bancos, puseram em outra aeronave e se foram. O Queen Air foi condenado a morrer ao relento.
Como o mato é denso, só se vê os sinais da aeronave ao chegar bem perto do local. A porta, que ao abrir se transforma em uma escada, está até hoje encostada na asa, fincada no chão, como se esperasse um fantasma entrar ou sair do lúgubre veículo. Dos dois lados de seu corpo, o prefixo está parcialmente escondido por vegetação. Uma árvore atravessou a asa direita. A roda dianteira está sem o pneu. Os dois motores —de 340 hp (250 kW), com seis cilindros— e as hélices foram retirados.
O avião tem lugar para 11 pessoas, mas não há sinal de assentos ou carga em seu interior. A poeira acinzentou a pintura branca, quase cobrindo o pequeno logotipo do proprietário à época, a mineira Embratáxi. O avião, que em bom estado pode custar cerca de US$ 500 mil (cerca de R$ 2 milhões), ficou abandonado para o resto da vida.
No registro da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), a aeronave PT-KKJ ainda consta como se existisse e pertencesse à Embratáxi, sob responsabilidade de Evaldo Schineider (com CPF não identificado). Não aparece o seu ano de produção.
A página de consultas ao RAB (Registro Aeronáutico Brasileiro) informa que o avião foi comprado pela empresa em 30/10/1989 e tinha certificado de inspeção anual (IAM, obrigatório) até 3/5/1990. O Certificado de aeronavegabilidade venceria apenas em 31/3/2002, mas foi suspenso já que o IAM não foi renovado por estar em “situação irregular no RAB”. Não consta a irregularidade, mas uma nota, em vermelho, indica: “Comunicada a venda com atraso”.
A Embratáxi existe desde 1970, como informa seu site institucional. Hoje está instalada em um hangar no Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte (MG). Apesar do nome, ela não faz mais táxi-aéreo. Desde 2002, dedica-se apenas à manutenção dos turboélices King Air, o irmão mais novo do Queen Air.
Os dois modelos de aeronave são grandes sucessos de vendas da empresa norte-americana Beechcraft. Eles são o desenvolvimento de uma aeronave lançada logo após a Segunda Guerra, Bonanza, também bimotor turboélice. No fim dos anos 1950, a companhia criou um modelo maior para participar de uma concorrência do Exército dos EUA. Era o Queen Air, cujo primeiro protótipo ficou pronto em 1958, com o nome Beech 65. A fabricante recebeu uma encomenda de cerca de 60 desses aviões para a força americana. A produção começou em 1960 e seguiu, com ligeiras alterações, até 1978. Já o King Air, lançado em 1964, é produzido até hoje, em novas versões.
Por telefone, o atendente da Embratáxi explica que a empresa mudou de dono em 2002, quando passou a cuidar de mecânica e estacionamento de aviões. Só quem poderia saber de um episódio anterior seria o gerente mais antigo, “Seu Sebastião”, que “quase não para por aqui”.
Dois dias e vários telefonemas depois, Sebastião Nunes conta que a empresa foi comprada do ex-governador de Minas Newton Cardoso (1987-1990). Toda a história anterior, a memória e os documentos ficaram com o antigo dono, explica. Sobre Evaldo Schineider, “eu não sei quem é, mas já ouvi esse nome aqui na Pampulha”.
A assessoria de imprensa da Anac oferece mais detalhes. Por email, informa que a aeronave, “em 17 de outubro de 1974, foi registrada em nome das Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Em 16 de dezembro de 1987, foi autorizada a transferência da aeronave da Cemig para a Unisa Táxi Aéreo Ltda. Em 31 de outubro de 1989, foi autorizada a transferência da aeronave da Unisa Táxi Aéreo para a Embratáxi S/A”.
Por ser o seu primeiro dono registrado, é provável que a Cemig tenha comprado a aeronave “zero quilômetro”. Naquela época, seu preço estava em torno de US$ 150 mil. O Brasil vivia o milagre econômico da ditadura militar e tinha uma das economias mais estatizadas do mundo não comunista. Pertencente ao governo estadual, a Cemig era um orgulho das alterosas, como os mineiros chamam as altas planícies de seu interior.
Depois de 31 anos, a Cemig não tem memória da transação ocorrida em 1987: “A Cemig informa que não localizou a documentação da referida aeronave. Vale ressaltar ainda que, a cada alienação, toda a documentação de caráter técnico e histórico de manutenção de cada aeronave é entregue aos arrematantes”, diz email da assessoria de imprensa.
Com endereço no Aeroporto da Pampulha, a arrematante Unisa Táxi Aéreo só aparece uma outra vez nos registros da Anac, como proprietária de um jato executivo Learjet PT-LNK, que teve o certificado de aeronavegabilidade cancelado em 3/5/1990. A firma consta como falida na Junta Comercial de Minas Gerais.
Os dois únicos negócios da empresa registrados na Anac foram feitos com governos: além do Queen Air comprado da Cemig, também o Learjet foi vendido, naquele mesmo 3/5/1990, para a Casa Militar do Governo da Bahia. Antes da venda, no entanto, a aeronave mudou de marca para PT-EIW. O certificado venceu para o prefixo PT-LNK, mas foi feito outro para sua nova identidade. Hoje, informa a Anac, o prefixo de uma aeronave funciona como a placa de um automóvel —não pode ser alterado ao longo de sua vida útil.
Filho de pais mineiros, Newton Cardoso nasceu na Bahia, o que não diminui sua mineiridade (“Não é sua culpa”, diz uma piada local sobre o filho de mineiros que o destino faz nascer fora do Estado). Fez carreira política em Contagem, cidade industrial na região metropolitana de Belo Horizonte, e ficou rico.
Newtão, como é conhecido, já era um empresário de sucesso quando se candidatou ao governo nas eleições de 1986. Uma nota na Folha, em 17 de agosto daquele ano, durante a campanha eleitoral, informava o patrimônio dos candidatos: “Segundo sua assessoria de imprensa, ele é proprietário de cinco fazendas, com um total de 9.100 hectares e 3.000 cabeças de gado, uma empresa de táxis aéreos (Embratáxi) e uma importadora e comercializadora de eletrodomésticos (Importex)”.
Naquela eleição, Newton Cardoso foi um dos muitos candidatos do PMDB beneficiados pelo sucesso eleitoral do congelamento de preços, o Plano Cruzado. Ele bateu nas urnas o então senador Itamar Franco, que, poucos depois, se tornaria presidente, quando do impeachment de Fernando Collor. Em 1998, Itamar e Newton se juntariam em uma chapa vitoriosa ao governo de Minas, em que Itamar se tornaria governador e Newton, um vice-todo-poderoso, uma espécie de primeiro-ministro de fato.
Após tomar posse em 1987, Newton se tornou o responsável em última instância pela Cemig, quando ela vendeu o Queen Air PT-KKJ para a Unisa. Ele seguia ocupando o Palácio da Liberdade quando essa empresa repassou o avião para a sua Embratáxi, dois anos depois.
Perguntado se, à época, os dois negócios sucessivos chegaram a ser investigados, o Tribunal de Contas do Estado de MG respondeu: “Não encontramos em nossos sistemas registros referentes à referida transação entre a Cemig e a Unisa e/ou Embratáxi. Vale ressaltar que nem todos os atos administrativos são alvos de inspeção/auditoria do Tribunal de Contas, sem ‘provocação’ por terceiros, pois o universo é imensurável”.
Aos 80, dono de uma fortuna que ele estimou em “mais de R$ 2,5 bilhões” durante processo de divórcio da ex-mulher Maria Lúcia, em 2009, Newton está afastado da política. Abriu espaço para o filho, o deputado federal Newton Cardoso Jr. Em entrevista por telefone, diz que comprou a Embratáxi em 1976, “da família do ex-governador de Minas Bias Fortes” (José Francisco, 1891-1971).
A data do negócio com a Embratáxi é controversa. Em 19/5/1988, a coluna “Belo Horizonte”, assinada por Gutemberg de Souza na Folha, cobrava transparência do então governador sobre seus negócios e mencionava: “A Embratáxi, empresa de táxi aéreo sediada em BH, foi fundada por Newton Cardoso dias antes de tomar posse no governo e o que lhe aconteceu depois é um mistério”.
Um deputado de oposição esperava havia dois meses por uma cópia do contrato social da empresa na Junta Comercial, o que normalmente levaria uma semana. É possível que a compra da empresa tenha vindo à luz dois anos antes, e não em 1976.
Sobre a aeronave PT-KKJ esquecida na selva, Newtão diz: “Nunca tive nenhum desastre e nunca perdi nenhuma aeronave. Não sei como esse avião pode ter ido parar lá”. Referindo-se aos Queen Air, ele afirma: “Esses aviões eram muito seguros”.
Também nega que suas aeronaves participassem da invasão garimpeira e diz não entender como uma delas foi parar em Roraima: “Eu só voava em Minas, aqui no Sudeste. Nunca voei para o Norte, nem servia ao garimpo. Esse avião não era meu, não. Eu tinha cinco aviões nessa época. Vendi e comprei alguns. É provável que o comprador não tenha tirado o logotipo do avião”. O ex-governador diz não lembrar da Unisa nem de Evaldo Schineider: “Não trabalhava para mim. Nem sei quem é. Ele é vivo?”.
Depois de vender a Embratáxi, em 2002, Cardoso segue preferindo usar aeronaves próprias. “Hoje, tenho um helicóptero e um jato da Embraer”.
Evaldo Schneider (sem o I depois do H) aparece no registro de aeronaves da Anac como proprietário e responsável por outro Queen Air, o PT-LGE, também adquirido em 1989 e cujo certificado foi cancelado em junho de 2002, mesmo ano em que a Embratáxi foi vendida aos novos donos. Não consegui localizá-lo.
Embora o ex-governador não se lembre, o avião de sua empresa sofreu uma ocorrência grave e ela foi comunicada às autoridades. Acidentes com aeronaves devem obrigatoriamente ser investigados, tarefa que cabe ao Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), da FAB (Força Aérea Brasileira).
Consultado, o órgão informou: “Consta no banco de dados a notificação da ocorrência envolvendo a aeronave de matrícula PT-KKJ, que aconteceu em 3 de maio de 1990. Os registros mostram que os trabalhos de investigação foram interrompidos devido às dificuldades de acesso ao local”. Perguntei se o acidente poderia ter sido causado pelo uso da aeronave turbohélice em uma pista precária em área indígena da Amazônia. A assessoria da FAB respondeu: “As condições da Pista de Uaicás (Waikás), à época, são desconhecidas. Portanto, não é possível emitir parecer sobre a operação aérea no local”.
A conversão da Embratáxi em empresa de manutenção não foi só uma estratégia empresarial dos novos proprietários. Em 2000, quando ainda era do ex-governador, a empresa teve a autorização de funcionamento cassada pelo DAC, como informou a portaria número 747 de 16 de junho daquele ano.
O arquivo da Anac não guarda o processo que resultou na punição. Mas uma pista forte pode ser encontrada no Cenipa. Segundo a FAB, além da investigação do acidente com o PT-KKJ, “o banco de dados do Cenipa registra outras três notificações envolvendo aeronaves da empresa Embratáxi”. Newtão pode não se lembrar de acidentes com 3 de seus 5 aviões, mas eles ocorreram e talvez tenham levado os novos proprietários a preferir cuidar de aeronaves em terra.
Mesmo no chão, àquela altura, o PT-KKJ já estava há 12 anos esquecido e coberto de mato.