Há 55 anos, ditadura militar também prendeu, cassou e torturou políticos acreanos

Aquele 31 de março de 1964, uma segunda-feira, há exatos 55 anos atrás, havia amanhecido com a beleza típica da Amazônia em final de inverno e a entrada da estação estival, com o sol em toda sua plenitude a iluminar o verde da floresta que circundava uma cidade de pouco mais de 20 mil almas. Rio Branco, embora com o status de Capital, ainda mantinha ares de província, com a maioria de suas casas de madeira e cobertas de alumínio, encarapitadas nos barrancos às margens do rio Acre e com a maioria de suas ruas de terra batida – numa época em que asfalto na região mais parecia coisa de ficção científica -, ainda assim, estava linda, como sempre.

Parecia ser mais um dia comum para uma sociedade em formação, com o povo do Acre vivendo seu segundo ano de elevação do território à condição de Estado membro da Federação. Parecia. Naquele dia o país mergulharia numa longa noite cuja escuridão só veio se dissipar 25 anos depois. Era o início dos anos de chumbo da ditadura militar que prendeu, torturou, assassinou, cassou e baniu brasileiros e entrou para a história como uma das ditaduras mais sangrentas de que se teria notícia no continente – após, claro, a queda da censura.

Por aqui, também foram presos, torturados e cassados políticos acreanos como o então governador José Augusto de Araújo, o então presidente da Supra (Superintendência da Reforma Agrária do Acre, uma espécie de Incra regional, na época), Ariosto Pires Miguéis, o sociólogo Helio Cury e o advogado Adherbal Maximiano Correa. De todos, o único vivo e a contar a história é o advogado Ariosto Pires Miguéis, ex-deputado estadual, atualmente com 83 anos. Cinco deputados estaduais também foram cassados.

Ariosto ao lado do governador José Augusto, na época, tomando pose na Supra/Foto: Cedida ao ContilNet

Ele conta que é possível que os militares a serviço do novo regime no Acre quisessem prender, naquele mesmo dia, o então governador José Augusto, que só seria cassado e preso dois meses depois, em maio de 1964, com as sedes do governo, o Palácio Rio Branco, e da Assembleia Legislativa, que funcionava num prédio em madeira no centro da cidade, cercadas por militares armados de metralhadoras. Foi assim que o capitão Edgar Pedreira de Cerqueira, então comandante do quarto Batalhão Especial de Fronteira, após derrubar o governador constitucional – o primeiro da história do Acre, eleito em 1962 -, tomou posse como governador.

José Augusto e seus principais assessores entraram no radar dos generais e ideólogos da futura ditadura porque eram ligados ao PTB, partido do presidente deposto João Goulart, que teve que se refugiar no Uuruguai, para não ser preso ou morto. Aquele 31 de março pegou o governador José Augusto de Araújo longe do Palácio Rio Branco. Ele estava exatamente no Rio de Janeiro, a tratamento de saúde por causa dos problemas cardíacos que acabariam matando-o na prisão da ditadura. Os cinco deputados estaduais cassados foram José Akel Fares, Gerardo Farias e Benjamim, Ruela, do PTB, e Eloy Abud e Darcy Fontele, do PSD, o partido que apoiou o golpe e que mais tarde seria transformado em Arena (Aliança Renovadora Nacional, “o maior Partido do Ocidente”, no dizer de um de seus idealizadores, o então governador de Minas Gerais Francelino Pereira). Mesmo 55 anos depois, ninguém consegue explicar, por exemplo, a cassação de Abud e Fontenele, já que ambos eram ligados ao regime. “Eu soube que foram cassados a mando do Kalume, que era adversário deles dentro do partido deles, o PSD”, diz Ariosto Miguéis – Kalume vem a ser o xapuriense Jorge Kalume, o segundo governador biônico após a cassação de José Augusto, em substituição a Edgar Cerqueira, ex-deputado federal, ex-senador da república e ex-prefeito de Rio Branco, falecido em 2010.

Naquele 31 de março aparentemente tranquilo no Acre – por causa do fuso horário de duas horas e por absoluta falta de comunicação com o restante do país, restrito a uma telefonia claudicante e a única emissora de rádio, a Difusora Acreana, “a Voz das Selvas” -, por volta das 8 horas da manhã ensolarada, Ariosto Pires Miguéis sai de sua casa, no bairro XV, deixa o velho Jeep em que se deslocava – um dos poucos veículos da cidade, numa época em que predominavam nas ruas os carros de boi e outros de tração animal, como cavalos e jumentos – às margens do rio Acre e se dirige ao “quadrado” – como era chamado o local que servia de porto e onde seria erguida a primeira ponte, a metálica, sobre rio Acre – para pegar a catraia que o levaria ao local de trabalho, no primeiro distrito da cidade. Antes de pegar a embarcação, ainda no porto, um popular, provavelmente sabendo de suas atividades e ideologia com pendores à esquerda, o aborda e o adverte:

– Ariosto, cuidado: o Exército está nas ruas e está tomando conta de tudo. O pessoal da Supra já está todo mundo preso.

Ariosto Pires falou à reportagem sobre o que sofreu nas mãos dos militares/Foto: ContilNet

Ele não leva a sério a advertência. “Pensei que era coisa de primeiro de abril, o dia da mentira, que alguém poderia ter adiantado. E fui trabalhar”, revelou.

Ao chegar na repartição, localizada na rua benjamim Constant, na frente do prédio onde hoje se localiza a Secretaria de Fazenda, suas secretárias, Marisanta Lopes e Marfisa Brasil, com ares apopléticos, fizeram um resumo da situação:

– Deram um golpe, seu Ariosto. A gente está ouvindo tudo no rádio. Depuseram o presidente e o Brizola fugiu para o Rio Grande do Sul e de lá está conclamando o povo brasileiro a resistir ao golpe. O senhor vai ser preso. Tem que fugir!

E Ariosto, sem acreditar no que acontecia, ainda perguntou:

– Isso não é uma brincadeira¿ Não é coisa de primeiro de abril¿

As mulheres então aumentaram o volume do rádio e as notícias vieram. Depois de alguns telefonemas e confirmação do golpe, ele rumou para o Palácio Rio Branco, cujo governador estava viajando e não havia ainda, na constituição estadual, a figura do vice governador. O governo, portanto, estava sendo exercido interinamente pelo chefe do gabinete civil, Mustafa Almeida.

Em Palácio, com a confirmação do golpe, Ariosto retorna, como ele diz, à repartição, destrói papéis que poderiam ser comprometedores à luz do novo regime, pega coisas pessoais e antes de ir embora, diz às secretárias:

– Se alguém me procurar, diz que sai por aí, que não disse onde fui nem quando vou voltar.

Era uma senha para uma sonhada fuga. Na rua reunião com o chefe do gabinete civil, Ariosto dissera que fugiria para os seringais na fronteira com a Bolívia. Fugiria junto com Hélio Cury, para Brasiléia.

Pegaria um batelão, à noite, no rio Acre para leva-lo ao aeroporto, logo ali adiante, no bairro que hoje leva o nome de Aeroporto Velho. Ariosto Pires Miguéis esperaria no porto de sua casa. A senha, no escuro, eram três piscadelas de lanterna. Conforme o combinado, a embarcação ancorou, ele embarca e chega ao aeroporto. Quando está a desembarcar, ouve um ultimato:

-Pare senão eu atiro!

Era um militar armado de metralhadora. Mesmo já sob o disfarce de seringueiro, com chapéus e roupas típicas e rotas, Ariosto é conhecido por um soldado. Foi preso e levado ao quartel do batalhão Especial de Fronteira. Lá já estava preso Hélio Cury. Ambos são levados a uma sala, em cuja mesa havia três objetos de tortura: um rebenque, um tipo de chicote de couro, uma espécie de coroa de arame farpado e uma palmatória. Ambos são deixados às sós. Hélio Cury, cabelos em desalinho, com a pele mais vermelha que o habitual e contrastando com os incríveis olhos verdes que o faziam uma espécie de galã tupiniquim na época, muito parecido com o homem apontado como mais bonito do mundo na época, Alain Delond, adverte, sem perder o bom humor que o caracterizou a vida toda:

– Ariosto, acho que vamos provar desses “brinquedos!

Ele não tem dúvidas de que o plano de fuga frustrado foi delatado por alguém próximo ao gabinete de José Augusto que o entregara aos militares. “Hoje, eu até já sei quem foi a pessoa, mas não falo porque não quero magoar famílias, que estão aí, vívas…”, diz.

Presos, diantes dos “brinquedos” e da provocação de Hélio Cury, Ariosto, resignado, apenas dar de ombros. Do outro lado da sala, surgem gritos: era o advogado Adherbal Maximiano, já preso, jurando inocência e até apreço ao novo regime. E era verdade: no Rio de Janeiro – embora paraense -, onde vivia e lá travara contato com o futuro governador José Augusto de Araújo, ele vivia encrencando com o pessoal de esquerda e não escondia sua simpatia pelo integralista Plínio Salgado, que dias antes, dirigindo a TFP (Tradição, Família e Prosperidade), organização de extrema direita, patrocinara um evento de apoio aos militares, a “Marcha pela Liberdade”. Adherbal Correa, que chegou a ser presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), seção Acre, por quase 40 anos, morreu, aos 81 anos de idade, em 2018, e dizia ter sido torturado naqueles dias em que ficara preso no quartel do Exército. “Até mijaram na minha cabeça”, contou, certa vez, na redação do jornal “O Rio Branco”, onde era colunista social e assinava a coluna “Status” sob o pseudônimo de Max.

Adherbal Correa também foi preso durante a ditadura/Foto: ContilNet

Enquanto isso, durante 50 dias, Ariosto Pires Miguéis comeria da banda podre da tortura. Embora não tenha experimentado a tal coroa de arame farpado, ele levou um sem número de “bolos’ nas mãos, com a palmatória. Quem lhe aplicava o castigo era um militar baixinho, de nome Monteiro, que queria fazê-lo confessar o envolvimento do governador José Augusto de Araújo no plano de “comunização” do país, do que era acusado o presidente deposto João Goulart e seus aliados. De Ariosto, a cada “bolada” com a palmatória nas mãos, o máximo que o militar ouvia era um palavrão.

– Filho da puta! – eu dizia, com os dentes trincados, pela dor, revela hoje Ariosto Migueis. Ele não sabe dizer se Hélio Cury e Adherbal foram também torturados com os instrumentos.

O fato é que, 50 dias depois, ele é colocado em liberdade e foge para o Rio de Janeiro, onde vai encontrar Zumba, uma dançarina natural de Santa Catarina, filha de alemão, cuja irmã namorava o deputado Gerado Farias, cassado e foragido num apartamento clandestino. Um dia, o ex-deputado o adverte: “vão te pegar aqui no Rio, eu tenho as informações”, disse o amigo.

Nova fuga. Desta vez para Brasília, ali o fugitivo vai contar com o apoio do então deputado federal José Ruy da Silveira Lino, muito respeitado apesar de suas ligações com o governo anterior – era amigo de João Goulart e foi governador do Acre na transição de território para Estado, por alguns meses. “Fui morar num sítio, de um amigo dele, nos arredores de Brasília. Mas logo começaram a surgir informações de que eu estava na lista dos que seriam eliminados no país, numa época em que diziam que jogavam presos de aviões no mar e em áreas isoladas. Fugi para Portugal”, conta Ariosto.

Ele não nega que sobreviveu graças a ajuda de um parente, um militar de sobrenome Pires, o qual nem conhecia, que manobrou de forma a que ele fosse solto e conseguisse a fuga para a Europa. Hoje, o ex-deputado vê o país com tristeza, principalmente com as tentativas de se comemorar um período e um golpe que tantos dissabores trouxe ao país.

Mas, como velho político, Miguéis é um otimista. “O que me conforta é saber que não é o conjunto dos militares que querem comemorar aquelas atrocidades. É um pequeno grupo que, infelizmente, chegou ao poder, mas os verdadeiros militares continuam constitucionalistas e nunca atenderam aos apelos dos que querem um novo golpe. Ainda tenho esperanças no meu país”, diz.

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