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Sumiço de avião com 7 indígenas expõe descontrole aéreo na Amazônia

Por UOL

– Paulo, parece que eu perdi um cilindro, tá pingando óleo no para-brisa, vou pousar na Independência.

– Não, Moita, vai para o rio Paru.

-Não, não, eu já decidi, vou pousar na Independência, eu não enxergo mais nada.

Essas foram as últimas palavras do piloto Jeziel Barbosa de Moura, conhecido como Moita na aviação, antes de desaparecer na Floresta Amazônica no Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, localizado no oeste do Amapá e norte do Pará.

Ele tinha ido até a aldeia Matawaré, de etnia Tiriyó, na terra indígena do Tumucumaque, buscar duas famílias indígenas que precisavam resolver problemas bancários na cidade. O destino de volta seria a cidade de Laranjal do Jari, a 275 km da capital Macapá.

A aeronave pilotada por Moura transportava uma família de cinco integrantes – Pantia Tiriyó, professor indígena de 31 anos, a esposa Pansina Tiriyó, 28, e os três filhos deles Crisciane, 14 anos, Cristiano, 5 anos, e Carlos, de 3 – e outras duas pessoas da mesma aldeia, Sepi Akuriyó, de 55 anos, e seu genro Jesaraja Tiriyó, de 30 anos.

Uma das desaparecidas, Sepi Akuriyó se dirigia a Laranjal do Jari para provar ao INSS que estava viva. Ela é a única falante da língua nativa dos Akiriyó, cerca de dez pessoas oriundas do Suriname que vivem em Matawaré, no oeste do Amapá. Ali formaram família com os Tiriyó, cuja língua passou a ser falada por todos os habitantes da aldeia.

As buscas aos oito desaparecidos começaram dois dias depois do último contato feito pelo piloto, em 2 de dezembro de 2018, mas foram suspensas após duas semanas pela FAB (Força Aérea Brasileira), sob protestos de povos indígenas da região.

O desaparecimento joga luz sobre uma das principais demandas das aldeias no Amapá e Pará: a regulamentação das pistas de pouso no Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, onde as 58 aldeias são acessíveis somente por meio de transporte aéreo.

“Desde o desaparecimento dessa aeronave, a dificuldade para localização é que não se sabia o plano de voo, e a razão é que as pistas não estão regularizadas”, afirma o procurador Alexandre Parreira Guimarães.

De acordo com o Ministério Público Federal no Amapá, há ao menos 249 pistas de pouso em territórios indígenas no país não regularizadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Do total, 17 estão no Tumucumaque.
Mesmo sem controle das autoridades, esses voos clandestinos praticados há três décadas são a única alternativa de transporte para grande parte dos habitantes da região.

Quem fiscaliza voos e pistas de pouso?

De acordo com a FAB, responsável pelo monitoramento do espaço aéreo do país, os pilotos civis e militares de todo o Brasil são obrigados a enviar as informações de voo antes da decolagem para o Sistema Integrado de Gestão dos Movimentos Aéreos, o Sigma. As informações do plano de voo podem ser transmitidas via rádio, telefone e, desde 2017, também por meio de um aplicativo de celular. Assim, o piloto recebe em tempo real a aprovação ou não do voo anunciado.

Como a aldeia Matawaré não tem uma pista de pouso registrada, Moura não apresentou um plano de voo às autoridades. Segundo o piloto Paulo Tridade, é comum que seus colegas decolem em regiões afastadas das grandes cidades da região sem avisar o AIS (Serviço de Informação Aeronáutica). Dessa maneira, nenhum órgão toma conhecimento dos voos.

Embora o controle do tráfego aéreo seja de responsabilidade da FAB, a homologação das pistas faz parte das atribuições da Anac.

Em 2012, o Ministério Público Federal no Amapá ajuizou uma ação civil pública pedindo que a União, a Anac, a Funai e o Instituto Chico Mendes fossem obrigados a regulamentar as pistas de pouso em terras indígenas.

Flávia Moura é a mais nova dos três filhos do piloto Jeziel Moura/Foto: UOL

“A terra indígena é um bem público da União, que tem o dever de prestar serviços como saúde e educação indígena. Como as pistas de pouso são essenciais não apenas para esses serviços básicos, mas também para o direito de locomoção dessas comunidades, tudo isso justificou que a gente ingressasse com essas ações, tanto para garantir esses direitos, quanto para a própria segurança do tráfego aéreo”, defende o procurador Alexandre Parreira Guimarães.

A Justiça Federal no Amapá se pronunciou a favor do pedido do MPF, mas os órgãos públicos recorreram ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília.

“Foi dada uma liminar pela Justiça no Amapá para que durante a tramitação do processo, até o julgamento da apelação, a União e os demais órgãos públicos continuassem com a obrigação de regularizar essas pistas de pouso”, explica o procurador-geral. Mas, segundo a Procuradoria, a liminar não vem sendo cumprida.

“Precisamos punir financeiramente esses órgãos públicos pela demora, e essa multa, de acordo com o pedido do MPF, será revertida para a própria finalidade do processo de regulamentação das pistas”. Até a publicação desta reportagem, não houve uma decisão da Justiça Federal no Amapá.

Em uma nota à BBC News Brasil, a Agência Nacional de Aviação Civil disse que existe uma comissão, que reúne diversos órgãos ligados à aviação, para mapear áreas indígenas que necessitam de pistas de pouso.

“As tratativas estão em fase final e serão amplamente divulgadas tão logo sejam aprovadas”, diz a nota.

De acordo com o Código Brasileiro da Aeronáutica, nenhum aeródromo civil pode ser utilizado oficialmente sem cadastramento. As pistas de pouso em todo o país são reguladas pela Resolução nº 158 da Anac. Os interessados devem enviar para ao òrgão o pedido de autorização prévia de construção, constando um projeto assinado por um profissional registrado pelo Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia).

As características vão depender das aeronaves que irão utilizar aquela pista, para os casos de aeronaves pequenas, com envergaduras de até 15m, a pista deve ter comprimento mínimo de 800m. Quanto à superfície, o texto diz que não deve haver irregularidades que prejudiquem o tráfego das aeronaves. Após a construção, a homologação da pista só é dada após notificação e cadastramento final pela Anac.

A agência respondeu que não há novos pedidos da Funai para homologar as pistas. Sobre os pedidos já feitos, a Anac respondeu que as pistas “ainda não foram homologadas porque o interessado (Funai e/ou Sesai – a Secretaria Especial de Saúde Indígena) não cumpriu os requisitos normativos aplicáveis a este processo, ou seja, existem pendências por parte dos interessados que ainda não foram sanadas.”

Pistas em terras indígenas

No Brasil, há cerca de 1,5 milhão de voos por ano, de acordo com o Departamento de Controle do Espaço Aéreo. A região Amazônica, que concentra 17% dos voos comerciais e não comerciais (com aeronaves particulares ou táxi aéreo), registrou cerca de 280 mil voos em 2017, sendo mais de 112 mil de voos não comerciais.

Nos últimos dez anos, os oito Estados que abrangem a Floresta Amazônica registraram 923 acidentes e incidentes, sendo 110 fatais.

Nas aldeias indígenas, apenas monomotores e bimotores, que comportam o piloto e até seis outros ocupantes, conseguem pousar ali devido às condições das pistas de pouso.

“Muitas das pistas são verdadeiros desafios para decolar e pousar, porque elas estão no meio da Floresta Amazônica e você não tem uma superfície reta como essa, são de terra ou até grama, são como montanhas russas, você precisa ser muito cuidadoso, é muito desafiador, precisa manter atenção total”, conta o piloto Paulo Nortes, que atua na região e é amigo de Moura.

Os voos para as aldeias do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque são realizados por empresas privadas de táxi aéreo para transportar pacientes hospitalares e técnicos de enfermagem da Sesai, professores da Secretaria Estadual de Educação, coordenadores da Funai e também de organizações civis da região, como o Iepé (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena).

Lideres indígenas da região já foram duas vezes a reuniões em Brasília para tratar de uma eventual regularização de pistas e voos. A Funai do Amapá tem um projeto com as pistas de pouso mapeadas da região, que foi enviado aos órgãos responsáveis.

“Já estava tudo pronto, inclusive o projeto estava encaminhado, só faltava a empresa assumir a responsabilidade para a construção. Depois, a gente recebeu a informação de que foi cancelado.”

Kutanan Wayana, coordenador da Apoianp (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Estado do Amapá e Norte do Pará), diz que as organizações indígenas estão sempre a frente, tomando iniciativas, no entanto, ressalta que nada vem sendo feito para amenizar o problema dos povos do Rio Paru D’Este e Tumucumaque, que só têm acesso por avião.

“A gente está vendo o que aconteceu aqui com nossos irmãos, uma tragédia, e a culpa é que dentro de terra indígena a pista não está homologada. O governo praticamente não quer saber de indígena, não se importa com a vida do homem, querem apenas desenvolvimento, fazer mineração, isso é importante para eles, é uma falta de respeito do governo brasileiro.”

O projeto inicial era homologar cinco pistas. Na última reunião em 2017, foram reduzidas para duas, Cuxaré no Rio Paru D’Este, e Bona no Tumucumaque.

Voos fora do radar

As Terras Indígenas do Tumucumaque e Paru D’Este foram demarcada em 1997 em uma área de mais de 4 milhões de hectares, onde vivem seis etnias: Aparai, Wayana, Tiriyó, Akuriyó, Wajãpi e Txikuyana. São 34 aldeias no lado oeste e 24 do lado leste, ao todo são cerca de 2,8 mil indígenas.

A região recebe, além dos voos fretados por órgãos públicos, como de saúde, educação e a própria Funai, voos particulares pagos pelos próprios indígenas.

“O principal motivo de deslocamento do indígena para cidade é resolver problemas pessoais, os professores vêm regularizar a documentação e hoje nosso maior problema é com os aposentados”, conta Cecília Awaeko Aparai, da Apiwa (Associação dos Povos Indígenas Wayana e Aparai).

O custo da viagem é alto: as empresas cobram R$ 3 mil o frete pelo trecho, em média. “Eles juntam o dinheirinho deles, ficam seis meses juntando para poder fretar o voo”, esclarece Cecília. Moura era de muita confiança dos indígenas, trabalhava nessa rota há mais de 20 anos.

“Os aposentados podiam parcelar com ele, pagavam de pouquinho, ele entendia nossa situação.”

E mais, como a base de Moura era Laranjal do Jari, era ainda mais em conta do que os voos para Macapá.

Muitos indígenas não têm condições de pagar o frete, por isso, a associação indígena tem uma Casa de Apoio há 14 anos no bairro Renascer II, zona norte de Macapá, onde eles podem se hospedar. Atualmente, há cerca de 25 indígenas na casa.

Aksuni Tiriyó, irmão de Pansina, uma das desaparecidas, é um deles. Ele veio para a capital há sete meses com a esposa e dois de seus sete filhos para receber o auxílio-maternidade, ainda sem solução. Ficou sabendo do desaparecimento da irmã via rádio, o único meio de comunicação com as aldeias.

“Eu senti muita dor, muita tristeza, só queremos saber o que aconteceu com a aeronave, se estão vivos ou se estão mortos”, diz. Sem dinheiro para voltar para aldeia, Aksuni espera uma carona de órgãos públicos.

O piloto Paulo Nortes está há cinco meses trabalhando no transporte de pacientes e profissionais de saúde das aldeias desta região.

“As pistas das aldeias não estão nos registros para você fazer um plano de voo. Então você tem que voar quieto, com o transponder muitas vezes desligado, e os controladores de voo e o governo não sabem sobre esses voos, não são monitorados”, explica.

O transponder é um aparelho que responde a sinais de rádio com a identificação da aeronave e um código sobre seu status de voo. Diferentemente dos pilotos que voam a partir de Laranjal do Jari, aqueles que saem de Macapá não conseguem burlar esse sistema, por isso, são obrigados a apresentarem um plano de voo falso, geralmente para a pista de pouso de Almeirim no Pará, mas desligam o transponder para não serem rastreados pelo Decea (Departamento de Controle do Espaço Aéreo) e, assim, poderem seguir para as aldeias.

Há diversos riscos envolvidos com o funcionamento incorreto do dispositivo. Um caso notório relacionado ao transponder foi o acidente que matou 154 pessoas em 2006 entre o avião da Gol e o jato Legacy. A investigação da Aeronáutica concluiu que o aparelho do Legacy estava desligado no momento do acidente. Nesse caso, no entanto, não houve comprovação de que os pilotos americanos tivessem desligado o dispositivo propositalmente.

A Anac, que não respondeu às críticas dos indígenas, afirma que “foi criado um grupo de trabalho pela Anac e outros órgãos envolvidos, como o Decea, a fim de viabilizar as operações nessas localidades abrangendo os demais regulamentos do setor aéreo”.

Haveria, por fim, a possibilidade de autorizar voos sem regulamentação tão estrita nessas pistas clandestinas?

“Na condição de signatário da Convenção de Aviação Civil Internacional, o Brasil segue as regras internacionais estabelecidas para o controle de tráfego aéreo, observando as boas práticas do setor que buscam a manutenção do alto índice de segurança das operações”, respondeu a FAB, em uma nota.

Buscas pelos desaparecidos

A procura pelos oito desaparecidos na região do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque foi suspensa pela FAB duas semanas depois de seu início. De acordo com a assessoria de imprensa da Força Aérea Brasileira, a missão envolveu 60 militares que realizaram 128 horas de voo em uma área total de 12.550 km², o equivalente a cerca de 1,2 milhão de campos de futebol.

“Essa operação foi um fracasso, porque em nenhum momento eles nos deram uma luz, uma esperança, eram sempre respostas negativas: hoje não encontramos nada, hoje o tempo não colaborou…”, critica Flávia Moura, caçula do piloto Jeziel Moura.

Após um problema com o motor do próprio avião em 2010, Moura voava com o avião de Pedro Baltazar, amigo e proprietário de uma das duas pistas de pouso registradas em Laranjal do Jari. Voar era a paixão do paraibano, começou aos 16 anos em aeroclubes de João Pessoa e não parou mais. Antes de desaparecer, fazia uma média de 12 voos por mês.

“Ele amava voar, estar no céu, a liberdade, dizia que ia morrer voando, a única coisa que poderia impedir seria ficar com minha avó, ele dizia que ia parar de fazer o que mais amava para cuidar da mãe”, relata a filha Flávia.
Paulo Tridade conhece Moura há 37 anos e voava a 22 minutos do amigo naquele dia, mas não conseguiu encontrá-lo próximo à pista onde o amigo disse que iria pousar.

“Quando cheguei lá, a chuva tinha acabado de passar. O inverno aqui começa no fim de janeiro para fevereiro, entendeu? Mas começou a chover na última semana de novembro, em mais de 40 anos de aviação, eu nunca tinha visto uma situação como essa”, conta Tridade.

As respostas do poder público se arrastam, e o tempo é crucial na garantia dos direitos das populações indígenas isoladas na Amazônia e no sucesso das buscas pelos desaparecidos. Sem respostas das autoridades sobre a retomada das buscas, indígenas e garimpeiros, amigos de Jeziel, organizaram grupos para procurar os amigos. O último grupo, de 13 indígenas, deixou a aldeia Bona no dia 7 de janeiro em direção à possível localização da queda da aeronave.

“A dificuldade é muito grande para conseguir achar algum vestígio do avião, porque lá é área muito montanhosa, as árvores são de 50, 100 metros, a floresta é muito fechada mesmo, não é área de campo”, explica Cecília.
No fim de janeiro, a BBC News Brasil estava na Casa de Apoio em Macapá quando esse grupo passou as últimas informações da mata pelo rádio. “Eles chegaram ao garimpo abandonado, o ponto indicado pelos pilotos, mas não conseguiram avistar o avião desaparecido”, conta Cecília Aparai.

Após 20 dias na Floresta Amazônica e mais de 34km² percorridos, só restavam 6kg de mantimentos e o pai de Pansina contraiu malária, por isso, os familiares indígenas decidiram retornar, uma viagem de mais sete dias andando até a aldeia Bona.

“A gente sente muito por eles, fizemos tudo para achar, são nossos parentes também, é índio, é gente, é humano. Nós sentimos muito nesse momento, mas agora continuar caminhando, né? Eu espero que as coisas melhorem, inclusive a regularização das pistas, a gente não tem outro meio, vai continuar fretando avião”, afirma Cecília.

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