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Cinco anos após o primeiro transplante de fígado no Acre, médico e paciente se encontram

Por TIÃO MAIA, DO CONTILNET

Foi praticamente indisfarçável a emoção registrada no último sábado (06), numa das dependências do hospital da Fundação Hospitalar do Acre (Fundhacre), num encontro do vigilante Lúcio César Leite Nepomunceno, de 44 anos, sua esposa Ivaneide e o filhinho Samuel, de três, com o homem considerado aquele que, abaixo de Deus, salvou sua vida e devolveu a alegria de viver a um paciente desenganado e condenado à morte. Lúcio César e sua família se encontraram com o médico Tércio Genzini, especialista de renome internacional em cirurgia hepatobiliopancreática e transplantes de órgãos abdominais.

Eles se encontraram cinco anos após a cirurgia que abriu caminho para o que o Acre tem hoje de mais avançado na área da medicina, o transplante de fígado, um programa criado nos governos da Frente Popular e intensificado sob a administração do governador Tião Viana, que é médico infectologista, o qual o atual governador Gladson Cameli, através do secretário de saúde, Alyson Bestene, fez questão de anunciar que será mantido em sua administração. De 44 casos de transplantados no Acre, apenas 3 vieram a óbito, o que coloca o Estado nas estatísticas de 95% de casos positivos – enquanto a média nacional é inferior a 80%.

Tércio Genzini vai continuar com o programa de transplantes na Fundação Hospilar do Acre/Foto: Tião Maia/ContilNet

Os atuais diretores da Fundação Hospitalar, Lúcio Brasil, e Marcelo Lima, da diretoria executiva, comemoraram a retomada do programa. Gladson e Genzini se encontraram neste sábado para reafirmar a parceria e o médico deve atender, até domingo (08), quando embarca de volta a São Paulo, pelo menos 100 pacientes. Ele deve voltar ao Acre no segundo semestre deste ano. Isso significa que o programa de transplantes de fígado no Acre não só será mantido como será ampliado sob o governo Gladson Cameli.

Lúcio César, o primeiro paciente transplantado de fígado num hospital do Acre, foi ao encontro do médico Tércio Genzini ao saber de seu retorno às atividades na Fundação Hospitalar para lhe apresentar a prova de que está bem e que a cirurgia o devolveu à vida: o filho Samuel, gerado pouco mais de um ano depois da cirurgia. Nem ele, sua esposa Ivanilde nem a criança têm o vírus da hepatite. No reencontro, todos riram, se abraçaram e pouco conseguiram conter a emoção. Vidas restauradas.

O primeiro transplantado de fígado com tecnologia médica genuinamente acreana – embora o cirurgião-chefe seja paulista – parecia condenado depois que descobriu, num exame casual, ser portador do vírus da hepatite B, que logo evoluiu para uma cirrose. Logo após a descoberta, o paciente começou a sentir as dores e os problemas decorrentes da doença, inclusive com chagas nas pernas causadas pela erisipela, uma consequência das doenças hepáticas. Entrou na fila dos transplantes, em São Paulo. Na primeira chamada, logo após o encontro de um doador compatível, seu embarque não foi possível por problemas de passagem aéreas. Na segunda vez, com medo da cirurgia, ele decidiu não embarcar. “Havia preferido morrer em casa, ao lado da minha família”, disse Lúcio.

Mas não era o fim. Tércio Genzini, já atuando no Acre, provocou o paciente a se submeter a cirurgia, embora lhe falasse dos riscos. Ele topou. Três anos depois da descoberta da doença e poucos dias depois da cirurgia, Lúcio deixou o hospital com os próprios pés. Era um novo homem e a prova viva de que foi possível vencer o pessimismo de que cirurgias de alta complexidade, como transplantes, não poderiam ser realizadas no Acre.

“Fazer transplantes de fígado no Acre foi uma vitória pessoal”, diz o médico.

É sobre sua experiência na área das hepatites e a relação com o Acre que o médico Tércio Genzini fala na entrevista exclusiva ao ContilNet, a seguir:

Tércio Genzini com o diretor da Fundhacre, Marcelo Lima, e o vigilante Lúcio César Leite Nepomunceno, sua esposa Ivaneide e o filhinho Samuel/Foto: Tião Maia/ContilNet

Como é que foi iniciada essa sua relação com o Acre e com os pacientes que o senhor vem clinicando e algumas vezes até operando com transplante?

Tércio Genzini – Começou em 1996, quando eu estava no meu consultório em São Paulo, na época, e atendi o presidente do Incra local. Ele foi ao meu consultório, com hepatite C. Nós o tratamos e ele ficou bem. Lá em São Paulo, no consultório, ele me falou: – lá na minha terra, tem muita gente com este problema. Será que você não poderia ir lá um dia fazer uma palestra?. Eu vim, em 1996, no auditório “Wilson Pinheiro”, lá no Incra. Na palestra, haviam umas 200 pessoas presentes e, ao término, eu soube que a maioria dos presentes era composta de pacientes, embora houvesse também profissionais de saúde, mas a maioria era de pacientes. E aí me pediram para que eu atendesse alguns pacientes que estavam lá, que eram da Associação dos Portadores de Hepatites do Acre. Improvisamos um consultório e eu atendi alguns pacientes. Um deles precisava de transplante. Aí eu falei para ele: – olha, vá para São Paulo. Ele foi.

O senhor sabe o nome desse paciente?

Sei, sim. É o Álvaro Melo, conhecido como “Curu”. Ele e muitas pessoas de sua época adquiriram a doença porque injetavam glucoenergam.

Essa alta taxa de hepatite no Acre está relacionada ao quê? Ao que a medicina e o senhor, como um especialista na área, atribuem ao qual fator? Essa taxa está dentro da normalidade, dentro do que é aceitável pela medicina?

O Acre é uma área endêmica. Tem índices maiores em relação ao restante do país. Aliás, a região amazônica é toda endêmica, não é só o Acre. São índices de duas ou três vezes mais que a média nacional.

Qual é a origem disso?

São vários fatores. Apesar das ótimas campanhas de vacinação de recém-nascidos para eliminar o problema da hepatite B, a gente ainda ver mães de crianças não vacinadas e transmissão de crianças que nascem e adquirem a doença da mãe, que são ainda jovens mas têm o problema de forma avançada. Há ainda a questão da iniciação sexual precoce, que é comum na região Norte e também sem proteção, talvez pela causa de crianças e adolescentes ainda pouco informados ou pouco responsáveis em relação à própria saúde, além da questão das drogas. As drogas são fortes transmissoras de hepatites.

Por que as drogas? Transmissões a partir de uso em mais de uma pessoa de seringas injetáveis?

Sim. Mas também drogas inalatórias e injetáveis, também porque, com o uso de drogas, as pessoas perdem a condição de se cuidarem e acabam tendo relações sexuais promíscuas e outras atitudes que fazem parte do uso das drogas, como o uso de bebidas…

Pois bem. Em relação à ingestão de bebidas, é possível haver transmissão de doenças a partir de bares pouco higienizados, através de copos mal lavados?

A transmissão pela saliva, que seria pelo copo, não é reconhecida, principalmente em relação as hepatites B e C, que são as crônicas. A contaminação por transmissão alimentar ou sexual é mais para a Hepatite A.

A hepatite A também é grave?

Ela não cronifica, ela não fica no corpo. É eliminada pelo próprio corpo. Uma grande quantidade da população brasileira já foi contaminada pela Hepatite A e eliminou o vírus. Mais de 50 ou 60 por cento das pessoas…

Ou seja, o corpo em si faz a sua parte… ?

O corpo elimina o vírus em 99 por cento em relação à Hepatite A.

E as outras hepatites, a B e a C, por que não são eliminadas também?

Por que elas enganam o sistema imunológico. A hepatite B é eliminada pelo corpo entre 90 a 95 por cento das vezes. Cinco a dez dos pacientes cronificam, continuam com o vírus e vão desenvolver cirrose, cânceres e outras complicações. Da hepatite C, 90 por cento dos pacientes o corpo só consegue eliminar entre cinco a dez por cento – 90 por cento ficam com o vírus e vão desenvolver lá na frente a cirrose. Então, as hepatites B e C e a Delta, que aqui na região Norte, se associa à B, são as hepatites perigosas que levam à cirrose, ao câncer e à necessidade de transplante.

A Delta, quem é portador desta hepatite tem chance de sobreviver?

Tem chances, sim. Nós temos pacientes transplantados. A Delta está sempre associada à B. Não há hepatite Delta sem a hepatite B. O vírus da hepatite Delta não tem a capa protetora, ele só tem o material genético. Ele entra no paciente que tem a hepatite B e que tem essa capa que protege o material genético do vírus. Por isso, a hepatite Delta só dar em quem tem a hepatite B.

E é então a hepatite mais perigosa?

Quando ela se associa à hepatite B, sim. A B mais a Delta é mais perigosa que a só a B. Quando se junta B, Delta e C é mais perigoso. Quanto mais ela se associam, maior é a agressão ao fígado e consequente maior é o risco.

O senhor acaba de se encontrar com o primeiro paciente transplantado aqui no Acre. Qual foi a sensação do encontro?

Vivi uma sensação interessante porque o contexto torna a situação muito especial. Nós queríamos fazer transplante de fígado aqui em Rio Branco, no Acre, e enfrentamos muito problemas, mas tivemos um apoio institucional muito forte, inclusive aqui da Fundação Hospitalar, o governo e a Secretaria da Saúde nos apoiaram, além da equipe multidisciplinar, cirurgiões, anestesistas e outros profissionais, enfim, muito apoio. Mas havia o contexto de os grandes centros transplantadores no Brasil, nas regiões mais desenvolvidas do país, não acreditavam e diziam que isso aqui não ia dar certo.

Por que? Qual era a justificativa? Discriminação ou interesse financeiro?

Eu acho que era, inicialmente, por não acreditarem nos recursos da região, por não acreditarem na capacidade de um lugar menor, distante e com menos recursos em realizar o procedimento mais complexo da medicina, que é o transplante de fígado. Se você pegar e classificar por categorias, uma das maiores complexidades da medicina é o transplante de fígado. Primeiro, não acreditavam. Depois, porque era desconfortável levar os pacientes daqui para fazer transplante em outros locais. Pelas regras do Ministério da Saúde, o maior aporte de recursos vai para o local onde se faz o transplante. Então, aqui era só um fornecedor, vamos dizer assim, de matéria prima dos pacientes que faziam transplante em outros locais e a maior quantidade de recursos iam para esses locais e aqui continuava sem os recursos e sem o desenvolvimento. O transplante traz muito desenvolvimento em todos os sentidos. Nós precisávamos – além de tudo isso, de muito apoio institucional, governamental e também de pacientes que aceitassem enfrentar esse desafio.

Como cobaias? Como foi no caso do Lúcio, que o senhor encontrou hoje?

[ Rindo.. ]- Nós falamos para ele: – olha, nunca foi feito isso aqui e você vai ser o primeiro caso, nós faremos o possível para dar certo…

A expressão cobaia é correta? Ela não agride pacientes como o Lúcio?

Nós a evitamos. Estamos na era dos termos politicamente corretos. Então, o termo cobaia não é absolutamente correto em relação a ser humano. Na verdade, nós aceitamos e ele também o desafio e isso nos aproximou muito porque todos nós trabalhamos juntos. Então, quando ele abriu os olhos após a anestesia e a gente viu que estava tudo bem, todo mundo quis chorar junto com ele, porque estávamos todos envolvidos. Afinal, todos passamos por um estres e nos manemos focados na parte técnica e havia uma entrega emocional muito grande.

O senhor passou por isso, embora seja um profissional treinado para manter a frieza, mesmo diante da morte?

Sim. Eu sabia disso. Antes de começar a fazer transplante aqui no Acre, participei de muitas reuniões, congressos e convenções. Em todos eles, nas maiores regiões, no centro sul e no sudeste, e em alguns centros maiores da região nordeste – todos me falavam: – olha (o transplante no Acre), não vai dar certo. Aliás, um dos coordenadores de transplante do Ministério da Saúde determinou que não era para fazer transplante no Acre, com a justificativa de que era um Estado com uma população baixa, pequena. Segundo ele, era para fazer em outros estados e maiores da região Norte. E eu dizia: – não, precisamos fazer porque lá tem muita gente precisando. Por que as pessoas precisam se deslocar para locais tão distantes para fazer o transplante e por que o Estado não pode bancar os recursos? Eu acho que tem que fazer. Para mim, pessoalmente, foi uma vitória. Eu era apontado como um irresponsável por vir tentar fazer transplante aqui e então travei uma briga feia do ponto de vista profissional. Eu sabia que, se não desse certo, todos aqueles que nos criticavam, iriam confirmar aquilo quer haviam me falado antes e haveria muita crítica, por parte dos pacientes – porque muitos pacientes aqui se contentavam em receber o TFD (Tratamento Fora de Domicilio) e ir embora para outros lugares e eles não se sentiam seguros com o tratamento aqui. Se não desse certo então, a gente sabia que nos pacientes iriam se revoltar, e haveria muitos problemas. A questão política também seria muito profunda. Então, esse primeiro transplante foi emblemático. Quando o Lúcio abriu os olhos e estava tudo bem, os exames dele ótimos – depois de uma equipe médica ter ficado 24 horas ao lado dele, foi a revelação de que os transplantes no Acre eram possíveis. O Lúcvi não falou nada, mas ele mostrou para nós que era possível o sonho. Se deu certo no Lúcio, vamos fazer um segundo caso. Vieram o segundo, o terceiro, o quarto… até que, no 23°, perdemos um paciente. Quando nós perdemos este paciente, houve um burburinho, um falatório no Estado. Só que, naquele instante, nós já estávamos com 95% de sucesso, enquanto a média nacional gira em torno de menos de 80%. Hoje, em 44 casos, nós temos apenas três óbitos, o que dar 95% de positividade.

Vigilante Lúcio César Leite Nepomunceno com a esposa Ivaneide e o filho Samuel/Foto: Tião Maia/ContilNet

O senhor falou da questão política e eu vou ser obrigado a perguntar: no governo passado, de oposição ao atual governo, havia apoio nesta área? O senhor acha que vai haver apoio sobre isso no atual governo?

Eu estava sem atender aqui desde outubro do ano passado, e não sabia se haveria continuidade do programa e estava aguardando uma manifestação da nova gestão. O que eu quero deixar claro é que eu sou muito grato aos governos passados. Meu contrato começou com o governador Jorge Viana e com o Cassiano Marques, que era o secretário da Saúde. O primeiro contrato para essas atividades foi feito em 2004, no governo Jorge Viana, e eles perceberam que esse movimento era importante. Depois, isso progrediu e a secretária Suely Melo e o então governador Tião Viana foram grandes incentivadores e nos deram muito apoio. Eu sou muito grato a eles e, para mim, isso foi uma oportunidade e eu sou muito feliz por ter participado de tudo isso. Isso foi uma oportunidade para mim também. Mas as coisas têm meio e fim, eu sei. Achava que o fim estava chegando e que talvez até uma outra pessoa, num novo governo, fosse assumir a continuidade do programa, em algum momento. Retomei minhas atividades em São Paulo e à preencher minhas atividades em relação aos horários e ao tempo que eu dedicava ao Acre e recentemente recebi um contato dos novos gestores, através do secretário Alysson Bestene. Ele fez um contato comigo e me disse: – olha, nós estamos tomando ciência da situação e este programa nós sabemos que é essencial e queremos continuá-lo. Fiquei muito feliz com isso porque sempre deixei muito claro que meu trabalho aqui é técnico, não é político e é em prol dos pacientes e, consequentemente, da medicina local, porque o transplante sempre traz avanços. A cada transplante que nós fazemos aqui, avançam os cuidados na UTI, avançam no centro cirúrgico e trazemos grandes quantidades de recursos do Ministério da Saúde para o Estado e com isso ajudamos para um desenvolvimento local muito forte. Eu já venho ao Acre há vinte anos e eu tenho um sentimento pelo Estado e seu povo. Nunca tive e nunca terei interesse por política. Estou aqui para servir o Estado e seus pacientes e todo o gestor que quiser contar com os meus serviços terá os meus serviços, feito sempre da melhor maneira que eu puder.

Tércio Genzine retorna a São Paulo neste domingo (07). O Acre sente saudades.

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