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Crítica do pensamento crítico e esperança de que o mundo se canse da repetição

Por ANTONIO ALVES, PARA CONTILNET

Mudando de ideia

Passei uma vida inteira ouvindo a pregação dos conscientes, que diziam ser necessário ter uma “visão crítica da realidade”. Sem saber exatamente o que era isso, concordei e fui à luta. Acho até que desenvolvi uma visão bastante crítica da realidade, mas… já deu, a realidade endoidou e toda racionalidade ficou meio obsoleta. A intuição, que nunca me largou, graças a Deus, me diz que não foi apenas um modelo de pensamento que se esgotou e já não dá conta de muita coisa, foi todo pensamento, o ato de pensar mesmo -que colocamos num altar perante o qual teriam que se prostrar todos os sentidos e sentimentos. Agora acho que precisamos dar um passo adiante e uma boa coisa seria desenvolver uma visão que vá além da crítica. Não sei se teria um nome, mas certamente seria apropriado dizer que deve ser uma visão criativa.

Sem saber exatamente o que era isso, concordei e fui à luta/Imagem: Ilustrativa

Senti muita necessidade desse passo adiante quando trabalhei ou convivi com pessoas que trabalhavam na administração pública e nas instituições civis em geral. Há uma enorme capacidade de diagnosticar os problemas e uma incapacidade ainda maior de encontrar soluções. O Estado, que corresponde ao Ego no organismo coletivo, tem a pretensão de coordenar o pensamento da sociedade, ao menos monopolizar a tomada de decisões. Mas dentro de seu aparelho emperrado pela burocracia e encrencado pela política a repetição impera, a inventividade fica na porta ou na sala de espera tomando chá de cadeira.

Vejo o esforço de cada “novo” governo para mostrar serviço, resultados, mudanças… mas, nada. Os problemas herdados do governo anterior se agravam, problemas novos aparecem, a crise continua como uma vaca no meio da sala. E depois de três anos, na campanha seguinte, os que começaram animados achando que iam fazer a “grande mudança” se jogam em outra campanha eleitoral apenas para manter seus empregos, porque os sonhos já se foram.

Mas, do lado de fora, o povo “se vira”: faz gambiarra, amarra com barbante, remenda, escora e, principalmente, inventa coisas novas com os restos de coisas velhas que tem de sobra no mundo. E assim sobrevive, escapa. E escapa melhor quem compreende que não pode depender do Estado nem esperar pelo governo. A economia -mais ou menos formal, mais ou mais informal, dribla a burocracia e foge da lei e é assim que a coisa funciona. No Estado-Mercado é assim, quem pode mais, chora menos. Já no camelódromo, é mais que livre-competição, o capitalismo em modo UFC.

Acontece de me comover, às vezes, com a boa intenção que ainda se encontra por aí. Meu ceticismo amolece quando vejo a equipe de uma escola, por exemplo, se reunindo e se esforçando para fazer Educação de verdade -não apenas cumprir tabela e sonhar com a aposentadoria- ou quando tenho notícia de um projeto melhorando a vida de uma comunidade, um grupo de jovens fazendo trabalho social voluntário, qualquer iniciativa em que permaneça alguma ética do serviço e uma boa dose de ingenuidade. Não creio que possa chegar muito longe, mas tenho vontade de ajudar.

Recomendo, a quem queira, prestar atenção onde essas boas iniciativas podem acontecer. As melhores possibilidades estão no terceiro escalão. O primeiro, que é o das autoridades, invariavelmente é dominado pela mediocridade própria da chamada “classe política”, que não entende nada de nada, vive de imagem e tem como horizonte de futuro o tempo de sua permanência no posto. O segundo é o dos gestores, conhecidos no seringal de antigamente como gerentes-aviados, gostam de dar ordens e mais ainda de retransmitir as ordens que vem de cima (“vamos, peãozada, a autoridade quer isso pra ontem”). Também não entendem muita coisa além de uma eventual formação profissional já há muito ultrapassada. E são poucos os que conhecem o território, as comunidades e a vida difícil lá de fora. Nesses escalões superiores predomina o pessoal que há muito tempo não anda de ônibus, muito menos de batelão.

Sobra o terceiro escalão, do pessoal que cumpre as ordens… ou não. Pode fazer corpo mole, greve, pedir licença médica, enrolar. Tem grupo de whatsapp próprio, do qual os chefes não participam, sentam nos bancos de trás das igrejas, andam num carrinho modesto ou até no transporte público. Por isso mesmo, ainda fazem parte do povo ao qual todos dizem servir. Sabem que a propaganda é falsa e podem escapar, ao menos por alguns momentos, da encenação política em que os de cima estão envolvidos. Muitos conservam, ainda, o tal pensamento crítico. E podem ter a chance, quem sabe, se aparecer uma oportunidade, de se envolver com algum trabalho mais criativo.

Ei, caro leitor amigo que teve a paciência de chegar até aqui, não estou falando do governo nem da prefeitura, apenas. Essa hierarquia -e os níveis de mediocridade correspondentes- estão em todas as organizações. É só olhar ao redor, onde quer que você esteja. Vai achar exceções, é claro, mas duvido que gaste todos os dedos para contá-las.

E o que eu tenho ou você tem a ver com isso? Cada um é que sabe, pode ser que o que digo tenha serventia pra alguém. Por mim, gosto de conversar e, já viu, tenho que colocar esse pensamento crítico -que me incomoda- em algum lugar.

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