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Exemplar de selo postal de 1889 mostra que Galvez quis de fato fazer do Acre um país

Por TIÃO MAIA, DO CONTILNET

A imagem quixotesca de um aventureiro capaz de recrutar como membros de um futuro exército bêbados e prostitutas das casas noturnas dos portos de Belém (PA) e Manaus (AM) para uma possível luta armada na selva e de carregar nos alforjes de guerra mais  garrafas de vinhos do que armas e munições, pode não corresponder àquilo que era de fato e o que quis implantar por  aqui o espanhol da cidade de Cadiz Luiz Galvez Rodrigues de Aria, ao proclamar, a 14 de julho de 1889, o Acre como um Estado Independente.

O Acre foi um país, com direito à bandeira, governo, povo, território, serviço postal e selo comemorativo em dois momentos, de 14 de julho de 1899 a 1 de janeiro de 1900 pela primeira vez, e entre 30 de janeiro e 15 de março de 1900, pela segunda e última vez – essas duas vezes de governo ocorreram porque, num interstício de 30 dias, Galvez fora vítima de um golpe de estado organizado pelo seringalista cearense Antônio de Sousa Braga, que assumiu o governo no mês de janeiro de 1900 e, vendo que a situação era mais complexa do que imaginava, renunciou e convidou o espanhol para voltar ao posto.

Em todo mundo, só haveria dois selos originais do que foi concebido por Luiz Galvez

São trapalhadas assim que reforçam a imagem de um Galvez aventureiro, romântico e às vezes até engraçado, que passava a ideia de que não sabia ao certo no que estava se metendo. Na verdade, isso é herança do livro “Galvez Imperador do Acre”, lançado em 1976, que marcou a estreia literária, nacional e internacional, do amazonense Márcio Souza, cuja obra foi, com justiça, aclamada pela crítica em todo o país e ao redor do mundo, exatamente por conter os elementos típicos de um folhetim – humor, aventura e uma causa a ser defendida. Mas Galvez talvez não fosse tão atrapalhado e sua imagem burlesca esteja mais para a ficção do autor do que para a verdade histórica.

É o que defendem historiadores e simpatizantes da causa de Galvez. “Eu vejo que, no caso dele, há dois aspectos que não correspondem àquela imagem estereotipada do Márcio Souza: a data de fundação do Estado Independente do Acre e sua tenacidade em voltar para dar continuidade àquilo que havia planejado”, diz, por exemplo, o comerciante aposentado Abrahim Farhat, um apaixonado pela História do Acre e por Luiz Galvez, como um de seus personagens mais marcantes. “Aquilo que o Márcio Souza fez e que foi praticamente reproduzido pela novelista Glória Perez foi um sacanagem, uma tentativa de avacalhar um herói genuíno. Outro fator importante é que, já naquela época, ele se colocou contra o imperialismo americano, enfrentando na época a nação já mais poderosa do planeta, os Estados Unidos. Isso tem que ser reconhecido”, diz Abrahim, o “Lhé”, acreano de origem libanesa, de 76 anos de idade.

Abrahim Farhat diz que Galvez enfrentou, já naquela época, os Estados Unidos e tinha bons propósitos para o Acre

De acordo com Farhat, só a data de fundação do Estado Independente, a 14 de julho de 1889, mostra que Galvez não estava para brincadeira. “A fundação do Estado Independente se deu no mesmo dia do centenário da queda da Bastilha, em Paris, que deu origem à Revolução Francesa. Isso mostra que Galvez queria ligar o Acre ao mundo e a nossa querida Glória Perez não viu isso em sua novela”, criticou.

Perez, acreana nascida em Rio Branco, foi a autora da novela “De Galvez a Chico Mendes”, exibida pela Rede Globo entre janeiro a abril de 2007 e para a qual os historiadores ainda hoje torcem a cara. Reflexo disso é que, até mesmo o cenários para as filmagens sobre a série, nas margens do rio Acre, na localidade hoje conhecida como Quixadá, mesmo com a promessa de que seriam revitalizados como área turística e lembrança da novela e da própria História do Acre, estão abandonados e se acabando pelos traças e cupins nos locais onde teriam se dado o teatro das operações das batalhas comandadas por Plácido de Castro logo após a prisão e o degredo de Luiz Galvez das terras acreanas.

“Não existe um país sem selo”, diz um amigo a Luiz Galvez

Essa imagem burlesca de Galvez à Márcio Souza e Glória Perez, no entanto, começa a sofrer controvérsias porque estão vindo à tona evidências de que o espanhol queria ir muito além de uma aventura. Uma dessas grandes evidências, além da criação da bandeira do Acre com as cores em verde e amarelo, com a estrela vermelha, conservada até os dias atuais como foi concebida por Galvez, a data de fundação coincidindo com a revolução francesa, é o selo postal que ele mandou imprimir, em 1989, em Buenos Aires (Argentina). O selo anunciava ao mundo o nascedouro de uma nova nação, no coração da selva amazônica, no meio da floresta, de uma nova pátria, com povo, território, economia e língua (a portuguesa) – os requisitos necessários para a criação de um novo país, no momento em que as fronteiras do mundo ainda estavam sendo demarcadas e muitas das nações que hoje integram o mapa mundial nem sonhavam existir.

A estátua do herói orna a entrada da Assembleia Legislativa

O selo postal cuja impressão foi determinada por Galvez é citado noutra obra em que o herói ou aventureiro é tratado com alguma dignidade, o livro “La estrella solitária”, do autor espanhol Alfonso Domingo (Sevilla, Algaida Editores, 2003), ainda sem tradução para o português, que conta a aventura de Galvez por terras brasileiras e acreanas com algum rigor histórico. Segundo o autor, o famoso selo é a prova física de que o Acre um dia fora de fato um país e surgiu de uma troca de correspondências entre Galvez, logo após sagrar-se imperador, e seu amigo e compatriota Guillermo Uhthoff, que havia ficado em Buenos Aires. Domingos diz em sua obra que, pouco tempo de depois de proclamar o Estado Independente do Acre, Galvez fora provocado numa correspondência:

– Ao Acre ainda lhe falta algo essencial para ser um país… – disse-lhe numa carta o amigo deixado na Argentina, ao que o novo imperador perguntou, noutra correspondência:

– O quê, Gillermo?

A resposta do amigo, segundo Alfonso Domingo:

– Os selos. Não existe um país sem selos.

 Dois meses depois de proclamar sua República – ou seja o regime que fosse – Galvez criava, por meio do decreto de número 15, o Serviço Postal Acreano, e solicitava seu ingresso na União Postal Universal, e Guillermo Uhthoff recebeu a incumbência de Galvez para, em Manaus, imprimir os selos. Como ninguém ali se dispôs a imprimi-los, Uhthoff os imprimiu em Buenos Aires, na tipografia das casas Monckee, dez mil folhas de cinquenta selos cada. O original do selo contém na parte superior a inscrição “1899 CORREIO 1899”, e na inferior “300 REIS 300”, destacado por um círculo duplo com a legenda, em caixa alta: “ESTADO INDEPENDENTE DO ACRE. PATRIA E LIBERDADE”.

No centro do círculo se veem três figuras: uma árvore representando a seringueira, apesar da imperfeição do desenho lembrar outra árvore, o taperi do seringueiro e, completando o quadro, uma tartaruga em pé. Tudo presidido por uma estrela de cinco pontas, a estrela solitária da liberdade, que iluminava o novo Estado e sinalizava o caminho com seus raios de luz.

O significado da tartaruga em pé: “a Revolução dos Lentos”

Pesquisadores e outros observadores da História do Acre, durante anos, tentaram decifrar o significado da tartaruga em pé. O autor Alfonso Domingo mata a charada dizendo que a tartaruguinha ali, quase em posição de combate, não era uma incógnita e sim uma metáfora para designar a revolução dos lentos. “O Acre se levanta, ainda que lentamente, de seu tempo ancestral olhando as estrelas de um novo século”. É claro que aqui convém esclarecer o que é de fato uma metáfora: é uma figura de linguagem em que se usa uma palavra ou uma expressão em um sentido que não é muito comum, revelando uma relação de semelhança entre dois termos. É um termo que no latim significa “meta”, “algo” e “phora” significa “sem sentido”. Esta palavra foi trazida do grego onde metaphorá significa “mudança” e “transposição” – outro sinal de que Galvez então não estava aqui em busca de aventura e sim agindo de caso pensado e estaria muito longe do personagem de Márcio Souza ou Glória Perez que o retrataram como um maluco em busca de poder, glória e riquezas.

Deputado Edvaldo Magalhães revestiu Luiz Galvez da seriedade que a literatura não mostra

Ao lado de figuras como Abrahim Farhat estão, por exemplo, pessoas como o deputado estadual Edvaldo Magalhães (PC do B), ex-presidente da Assembleia Legislativa. Ao tempo em que estava na presidência do Poder Legislativo local, o deputado decorou o plenário da Assembleia com quadros de marchetaria – uma arte que consiste na técnica de ornamentar as superfícies planas de móveis, painéis, pisos, tetos, através da aplicação de materiais diversos, tais como madeira, metais, madrepérola, pedras, plásticos, marfim e chifres de animais, tendo como principal suporte a madeira, técnica criada na Europa, mais precisamente na Alemanha, e praticada no Acre, no Vale do Juruá, pelo artista acreano Maquerson Pereira, que a aprendeu em meio aos religiosos alemães que ajudaram na colonização da região, notadamente da cidade de Cruzeiro do Sul. Pois os belos painéis em madeira ornam a Assembleia contando a epopeia da Revolução Acreana, sem esquecer seu personagem mais emblemático – ele, Luiz Galvez Rodrigues de Aria, cuja estátua, no tamanho estimado de sua altura, um homem com pouco mais de 1m70, usando bigode e cavanhaque ao estilo pera e usando óculos do tipo picinê, como convinha a um europeu e fidalgo de seu tempo, orna a entrada do prédio ao lado de José Guiomard Santos, o político e militar mineiro que jogou sua vida na elevação do território do Acre à condição de Estado-membro da Federação, em 1962. Na estátua, encravada na porta da maior casa de leis do Estado, lá está a estátua com a inscrição a ele atribuída: – “Se a pátria não nos quer, que criemos outro pátria”. Outro sinal de que o espanhol não estava para brincadeira nem para aventura.

“Eu nunca tive dúvidas da seriedade de Galvez nem de seus propósitos”, justifica Edvaldo Magalhães, o autor da homenagem. Como o comerciante Farhat, o parlamentar está convencido de que Galvez, ao travar conhecimento com a dura realidade dos brasileiros que viviam socados na selva na colheita do látex, sem pátria, sem porvir ou futuro, como bem descreveu o escritor Euclides da Cunha, outro que andou por aqui praticamente na mesma época, convenceu-se de que algo grandioso precisaria ser feito. E não se omitiu.

Financiamento de 400 contos de réis, uma fortuna na época

O professor Sérgio Roberto Gomes de Souza, 53 anos, acreano natural de Xapuri, do Departamento de História da Universidade Federal do Acre (Ufac), em sua tese “Desnervados, desfibrados e amarelos em busca da cura: saúde pública no Acre Territorial’, a páginas tantas, cita o espanhol. A tese foi apresentada em 2014 ao programa de pós-graduação em história social do departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título em doutor em história. Ao investigar a formação do território onde hoje está o Estado do Acre, lá no início do século passado, o pesquisador vai encontrar Galvez sendo financiado pelo então governador do Amazonas, Ramalho Júnior, para vir ao Acre e por fim à ação dos  bolivianos que se sentiam donos do território – como de fato eram, segundo os tratados dos quais o Brasil era signatário – e impedir que eles se apropriassem do principal produto de exportação do Amazonas e do próprio país na época, a borracha extraída das seringueiras, que era a base da economia e do financiamento que as cidades amazônicas como Manaus e Belém, começavam a experimentar.

Numa época em que energia elétrica, bondes e casarões em alvenaria eram luxos apenas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, Manaus e Belém também tinham sua luxúria. Um bom exemplo do que foi esta belle epóque na Amazônia é a imponência do Teatro Amazonas, em Manaus – todo ele construído com produtos, das vidraças às telhas, importados de países ao redor do mundo e financiado com o dinheiro obtido com a borracha que saíam dos seringais, principalmente do Acre, território rico em plantios naturais da árvore cuja seiva resulta no leite e goma que iriam se tornar no produto cobiçado pelo mercado internacional, principalmente a Europa, que dava os primeiros passos em sua grande Revolução Industrial.

A tese do professor Sérgio Roberto mostra então que Galvez não deixou Belém, onde atuava como repórter do jornal “A Província do Pará” e depois Manaus para vir ao Acre de forma aventureira. Tudo deu-se dentro de um acordo em que o governo do Amazonas – sem desafiar o governo central, que respeitava os tratados dos quais era signatário dando o território ao sul à Bolívia e ao Norte ao Peru – secretamente arma e financia a Luiz Galvez. “Foi tanto dinheiro que, ao deixar o Acre, preso pela Marinha brasileira, Galvez ainda conserva 400 contos de réis”, conta o historiador. Réis era a moeda da época e este valor, para os padrões daquele tempo, eram quase uma fortuna.

Selos que são a prova física do Acre Estado Independente podem ser reimpressos

Mas e o selo? Bem o selo é então a prova da seriedade com que Galvez quis imprimir e revestir seu governo. Foram feitos diversos selos com valores diferentes. Os selos foram impressos em folhas de 50 exemplares e enviados para o Acre, via Manaus. Entretanto, na última etapa da viagem, uma canhoneira brasileira apreendeu o barco e todas as mercadorias que transportadas, incluindo os selos. É sabido que todos os selos foram destruídos, porém, são conhecidos alguns exemplares remanescentes de uma única folha que havia sido enviada como amostra. Existe um único múltiplo conhecido, tratando-se de um par horizontal, que ninguém sabe onde estão e que entraram para a o acervo de colecionadores como uma autêntica fortuna.

O historiador Sérgio Roberto cita o espanhol em sua tese de doutorado em História

Os Correios poderão reeditar os selos, com base nas imagens dos que sobraram, e colocá-los no mercado, diz a presidente do Sindicato dos Correios do Acre, Suzi Cristina da Costa, ao aceitar a provocação do ativista da causa Abrahim Farhat. Para isso basta que haja interesse e financiamento. Cada selos personalizado e comemorativo custa uma média entre R$ 12 a R$ 35,00 e pode ser impresso na quantidade dos interessados. Abrahim Farhat agora tem uma nova causa: convencer empresários locais que também gostem da História do Acre e de Luiz Galvez como o primeiro a sonhar com a liberdade desta terra a financiar as impressões para que em julho de 2019, quando os feitos do espanhol por aqui completam120 anos, sejam relembrados e que assim se comece a dar ao personagem emblemático os contornos do que ele realmente foi e do que queria fazer nas terras acreanas.

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