Jogos e problemas entre peões e damas nos tabuleiros do espaço e do tempo

Há alguns anos, minha filha Veriana (acho que ainda nem era jornalista, mas já era feminista convicta) me falou de um blog chamado “Escreva, Lola, escreva”. Não li, mas o nome ficou na cabeça como uma boa referência. Por esses dias, entretanto, fiquei conhecendo a Lola por um artigo que foi destaque no portal UOL, narrando os perigos de seu enfrentamento contra os machistas enlouquecidos, que ameaçam matar e esfolar, ainda mais nesses tempos em que as várias formas de fascismo tiraram bilhetes premiados na loteria eleitoral. Fiquei sabendo que Lola Aronovich é professora universitária, mora no Ceará, que sua luta inspirou a lei, recentemente aprovada, que autoriza a Polícia Federal a investigar crimes de ódio contra mulheres e manifestações de misoginia.

Impressionou-me saber que esses comentários desagradáveis e piadas infames que vemos na internet não são apenas expressões de um machismo antigo e normalizado pela sociedade patriarcal que marcou a identidade do Brasil desde os tempos coloniais, mas têm os mesmos fundamentos das ofensas e xingamentos de uma militância violenta e organizada que emerge da deep web e tem ligações com diversos tipos de máfias e eventos criminosos. É preciso ter mais atenção para ver que os índices altíssimos de violência contra as mulheres revelam, além de um combustível ideológico antigo, uma maquinaria social moderna.

Para esquecer um pouco das lutas e tragédias inevitáveis neste vale de lágrimas, busquei dedicar algumas horas no fim-de-semana para outro mundo, também de lutas e tragédias, mas quase sempre apenas simbólicas: fui acompanhar as partidas dos principais torneios de xadrez no Brasil e no mundo. Sim, torcida brasileira, tem transmissão ao vivo de partidas de xadrez e são muito mais emocionantes que os jogos da atual seleção de futebol.

Mas aí também acabo encontrando questões que, à falta de uma palavra menos aborrecida, podemos chamar de políticas. O campeonato dos Estados Unidos, que terminou no domingo, tinha uma emoção a mais: era a primeira vez que o cubano Leinier Dominguez, que ganhou cidadania norte-americana há pouco tempo, participaria da competição. Não sei como estão se sentindo os cubanos com a passagem de seu ídolo para o time inimigo, mas acho que os partidários de Mister Trump não gostariam que um imigrante latino se tornasse o seu campeão nacional. E ele chegou bem perto, ficou atrás apenas de Hikaru Nakamura, o vencedor, e de Fabiano Caruana, segundo colocado. Êpa! Mas com esses nomes, são americanos? Sim, sim, mas são todos filhos de imigrantes, é claro. Italianos, japoneses, coreanos, filipinos… que seria do nobilíssimo esporte da mente nos EUA se não fossem os imigrantes?

Aliás, o que seria da música e das artes em geral, das ciências, de tudo, até da política norte-americana, se não fossem os imigrantes? Por isso é inqualificável a estupidez de Mister Trump, que pode se materializar na forma de um muro na fronteira com o México, e de toda a gritaria xenófoba por lá e por aqui, assim como é inqualificável a permanência ou ressurgimento do racismo -também lá e cá.

Deixei tudo isso pra quando chegasse a segunda-feira, que é “dia de branco”, e fui tratar de ver os jogos. Aí passei para a Europa, onde o russo Artemiev ganhou o campeonato continental. Depois fui ao Azerbaijão, para o início de um importante torneio com alguns dos dez melhores enxadristas do mundo, na atualidade, entre eles o campeão mundial, um jovem norueguês chamados Magnus Carlsen. Daí voltei ao Brasil, para um torneio em Natal do qual dois capivaras acreanos estavam participando e obtendo um resultado até razoável. Fiquei com vontade de conhecer as belas praias do Rio Grande do Norte, um passeio que eu certamente faria antes ou depois do torneio.

Na lista dos jogadores, encontrei um velho amigo do Acre, o Mestre Nacional Herbert Carvalho. Seu filho João mora aqui e o mestre Herbert vem sempre, como veio no ano passado para o aniversário da netinha. Lembrei das conversas que sempre temos, sobre xadrez e política, um vício que aquele velho comunista não larga nunca. Certamente agora deve estar indignado com as “comemorações” dos 55 anos do golpe militar, ordenadas pelo capitão-presidente, ou com a entrevista do Chanceler Araújo dizendo que o nazismo era de esquerda.

Reparei que outros nomes na lista do torneio eram velhos conhecidos. Embora ainda não os tenha encontrado pessoalmente, vários mestres são amigos de longa data, pois vi suas partidas -e aprendi algo com elas- em competições várias desde o distante ano de 1971, em que conheci a arte-ciência da deusa Caissa. Então, pensei: se esses mestres estão na ativa desde aquele tempo, devem ter maios ou menos a mesma idade que eu. E fui procurar referências na internet sobre alguns deles.

Foi então que vi uma imagem de um Mestre que alguém já me tinha dito que era “velho”. Como assim, velho, se ele tem apenas um ano a mais que eu? Falta de respeito, ora bolas. Silvio Cunha Pereira, é o nome dele, é catarinense mas mora no Ceará há muitos anos, deve ser bem conhecido pelo também Mestre Iung Pinheiro, acreano que mora no Ceará, que aprendeu o xadrez com seu pai, meu amigo Francisco Dandão, que aprendeu comigo há 4o anos ou mais. E como prova de que o Mestre Silvio é jovem, encontrei um texto chamando-o de “Silvinho”… escrito pela esposa dele, que se declara apaixonada, uma certa Lola, no blog “Escreva, Lola, escreva”!

Puxa vida, me lembrei dos tempos em que morei no Rio de Janeiro e costumava encontrar acreanos assim, por acaso, nas esquinas do Catete ou em Copacabana. Numa época em que o Rio ainda tinha praias limpas e não era dominado pelo tráfico e pelas milícias. O mundo é mesmo muito pequeno.

Li, finalmente, o blog da Lola e fiquei sabendo, entre outras coisas, que ela também joga xadrez, foi assim que conheceu o Silvio, e que foi colocada entre os jogadores de destaque num torneio na Argentina apenas porque acharam que com seu sobrenome, Aronovich, ela deveria ser da Rússia (o nome vem da Ucrânia, que também tem enorme tradição enxadrística). Ela fala da loucura dos machistas (ela chama de mascus) e dos comentários agressivos que fazem no blog. Um deles disse que era casada com um “fracassado” que ganhavam menos que ela. Carambolas, o cara acha que é vergonhoso o marido ter remuneração menor que da esposa. Lola diz que, de fato, passou a ganhar um pouco mais que o marido depois que começou a dar aulas na universidade, nos últimos 5 dos 25 anos em que estão casados. E que isso nunca foi problema: Silvio é um atleta bem-sucedido, com vários títulos, vive de um trabalho que gosta de fazer, é um dos melhores professores de xadrez do país, e ainda por cima tem um casamento feliz. Competência e sorte, sim senhor.

Mostrei o texto para minha esposa e ela me perguntou: você vai ficar chateado se um dia eu ganhar mais dinheiro que você? Ora, mas de jeito nenhum! Isso será ótimo, melhor ainda se o dinheiro for suficiente para que possamos viajar, conhecer belas praias -e eu possa jogar bons torneios de xadrez. Vou receber com humildade essa grande derrota do meu machismo.

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