Se um homem volta atrás em sua promessa de se casar com uma mulher, pode o sexo consentido entre dois adultos ser considerado estupro?
Para a Suprema Corte da Índia, a resposta é “sim”.
Em uma decisão inédita, o tribunal confirmou a condenação de um médico por estupro no Estado de Chhattisgarh, na região central do país. O acusado mantinha relações sexuais consensuais com uma mulher com quem havia prometido se casar – mas mudou de ideia e se casou com outra.
Segundo a corte, a mulher só aceitou fazer sexo com o homem por causa da promessa de casamento. Caso contrário, não haveria consentimento.
A Índia ainda é considerada um país bastante conservador em relação aos costumes. A virgindade é valorizada e uma mulher que tenha feito sexo antes do casamento pode ter dificuldades em encontrar um parceiro.
Os juízes disseram que o acusado tinha uma “clara intenção” de não se casar com ela, acrescentando que “as relações sexuais neste contexto de total equívoco não podem ser tratadas como consentimento”. Segundo eles, o homem “deve enfrentar as consequências do crime que cometeu”. Apesar disso, a pena inicial de dez anos de prisão, determinada pelo tribunal de instância inferior, foi reduzida para sete anos.
Não se trata de um caso raro – segundo estatísticas oficiais, a polícia registrou 10.068 casos semelhantes de estupro por “pessoas conhecidas que prometeram se casar com a vítima” em 2016. No ano anterior, esse número foi de 7.655.
Eis alguns casos recentes envolvendo “quebra de promessa de casamento”:
– Em abril de 2019, um tribunal no Estado de Karnataka, no sul do país, libertou um homem sob fiança, dizendo que mulheres com educação formal em um relacionamento pré-matrimonial não podem se queixar de estupro após o término deste – mesmo que o sexo consensual fosse condicionado à promessa de casamento.
– Em 2017, um jornalista do Estado de Kerala, no sul do país, foi preso depois que uma colega o acusou de assediá-la sexualmente. Segundo relatos da polícia, os dois estavam em um relacionamento há mais de um ano. Ele teria prometido se casar com ela, mas depois mudou de ideia.
– Um cidadão escocês foi preso na capital da Índia, Nova Déli, em 2016, depois que uma mulher alegou ter sido estuprada por ele durante cinco meses. Segundo ela, ele lhe havia prometido casamento, mas decidiu terminar o relacionamento.
Os juízes da Suprema Corte aconselharam os tribunais de instâncias inferiores a “avaliar cuidadosamente se o homem realmente queria se casar com a vítima ou se agiu de má fé desde o início e havia feito uma promessa falsa apenas para satisfazer sua luxúria”.
Isso significa que se um homem puder provar que pretendia se casar com a mulher, mas mudou de ideia mais tarde, então não pode ser acusado de estupro. Só seria considerado estupro se ele tiver intenções duvidosas desde o início.
Agora, como essa “intenção” não é fácil de ser provada, tais casos acabam ficando a critério dos juízes. Há também preocupações de que a lei possa ser mal empregada.
Devido ao alto número de casos, a ministra Pratibha Rani, da Alta Corte de Déli, disse em 2017 que as mulheres usam as leis de estupro por “vingança” quando um relacionamento chega ao fim.
“Este tribunal observou em várias ocasiões que o número de casos em que ambas as pessoas, por vontade própria, desenvolvem um relacionamento físico consensual, quando a relação se desfaz devido a alguma razão, as mulheres usam a lei como uma arma de vingança pessoal.”
“Elas tendem a apresentar tais atos consensuais como incidentes de estupro, talvez por raiva e frustração. Isso exige uma demarcação clara entre o estupro e o sexo consensual, especialmente no caso em que a queixa é que o consentimento foi condicionado à promessa de casamento”, disse a magistrada.
Muitos indianos acreditam que as leis de estupro não devem ser usadas para regular relacionamentos íntimos, especialmente nos casos em que as mulheres têm liberdade de escolha e estão entrando em um relacionamento por opção.
Muitos integrantes do Judiciário também parecem compartilhar essa opinião e, em certa medida, isso explica por que a taxa de condenação em tais casos é muito baixa e a maioria dos homens é absolvida.
Em 2016, a Alta Corte de Mumbai também decidiu que uma mulher adulta instruída que tenha um relacionamento sexual consensual não pode mais alegar estupro quando a relação termina.
A advogada e ativista Flavia Agnes, de Mumbai, lembra, contudo, que muitas dessas queixas vêm de mulheres socialmente desfavorecidas e pobres de áreas rurais, que são frequentemente ludibriadas com promessas de casamento e depois abandonadas ao engravidarem. Ela acrescenta que, de acordo com o atual sistema legal da Índia, a lei de estupro pode ser o único recurso que elas têm para reivindicar indenização ou mesmo pensão alimentícia dos homens.
Por essa razão, Agnes sugere a promulgação de novas leis que, em vez de condenarem os homens a longas penas de prisão, os obriguem a pagar compensações a mulher e aos filhos desse relacionamento casual.