Marcando na agenda
A friagem leve dá o primeiro anúncio do verão amazônico. Ainda não chegou com mala e cuia, há indícios de que a chuva pretende resistir por algum tempo -por isso a alegria do Friale não é completa- mas, como todos os anos, o vento vai mudar de vez e as prefeituras vão começar a tapar os buracos das cidades castigadas pelo inverno. Veremos, então, como serão os dias de sol dos novos tempos e dos novos negócios rurais e urbanos prometidos nas campanhas eleitorais.
Fui convidado para um simpósio na Ufac, promovido pelo governo estadual, com o abrangente título “Acre, desenvolvimento, agronegócio, agricultura familiar e meio ambiente”. Parece que a intenção inicial era conversar com a mal-chamada comunidade acadêmica sobre o agronegócio, que é, como sabemos, a nova promessa de redenção econômica para as fronteiras amazônicas ainda não totalmente conquistadas pela soja. Mas há resistências em embarcar num debate monotemático cujo resultado, previsível, é um ping-pong de opiniões contrárias e irredutíveis. A ampliação temática não é garantia de que a conversa seja mais amena mas, ao menos, demonstra disposição de dialogar e ouvir idéias diversas e diferentes.
Aceitei o convite. Não fujo de debates necessários e costumo ter paciência para escutar conversas nas quais não acredito com a esperança de encontrar, pelo menos, pessoas inteligentes e que tenham a mesma paciência para ouvir. Se o governo quer dialogar, vamos lá, não há problema.
Meu temor é de que o verão seja aquecido não apenas pelo fogo das queimadas, mas também das armas na pistolagem que já mostrou sua cara feia por esses dias, aqui pertinho, na divisa Acre-Amazonas-Rondônia. Fuzilamento de posseiros, índios, extrativistas, ambientalistas… já vivemos esse tempo e não temos saudades. Todo diálogo, portanto, é bem-vindo com a condição de que não seja propaganda nem conversa fiada.
Também já cansou o papo ideológico, essa histeria idiota de combate a um tal de “marxismo cultural”, que seria uma fantástica conspiração da esquerda gayzista para dominar o mundo, esse besteirol ministérico que faz a festa da mídia do entretenimento político. Nas províncias da Amazônia, esse grande engôdo encontra apoio na arraia-miúda: políticos que querem puxar o saco de autoridades federais e arranjar boquinhas para financiar seus financiadores. Daí fazem concursos de subserviência: quem apresentar a proposta mais esdrúxula para acabar com os índios e a floresta, ganha cartela para entrar no sorteio. É claro que isso não tem nenhum efeito positivo no desenvolvimento econômico e social, mas faz barulho e facilita a vida de alguns, pois, mesmo quando não prosperam, essas propostas servem para criar clima favorável e incentivar os piromaníacos.
O principal problema de todos os governos (esquerda, direita, tanto faz) é o desprezo ou uso parcial da ciência. E, pior ainda, a idéia de que ciência é apenas o que pode ser transformado em tecnologia. A antropologia, por exemplo, é vista quase como uma filosofia inútil que atrapalha a produção. E não se sabe o que fazer com as pessoas, famílias, comunidades, povos que vivem na floresta e no mundo rural.
Lembro da brincadeira do Walter Gomes, nos anos 80, na redação do antigo jornal O Rio Branco. Puxava conversa com o editor Zé Leite minha frente, só pra me provocar, dizendo: “tenho a solução final para o problema dos posseiros, é chamar para uma reunião com o Incra, num galpão fechado, e ligar a entrada do ar-condicionado diretamente nos canos de escapamento de vinte caminhões; em poucos minutos o problema está resolvido”. É claro que o Zé Leite apoiava a idéia e sugeria que eu tivesse entrada garantida na tal reunião, para fazer uma reportagem detalhada…
Trinta anos depois, “essa gente” já veio para a cidade e seus descendentes estão sendo fuzilados nas esquinas, na guerra de milícias e facções. Ainda tem alguns teimosos espalhados pelos rios e ramais. Entra governo e sai governo, mudam apenas as palavras e frases -fixar o homem no campo, manejo sustentável, empreendedorismo, agroindústria- mas, no fundo, a conversa é a mesma. E a “solução final” ainda não chegou, mas há muitas ofertas e são anunciadas na grande liquidação de verão.