Há mais ciência em política e economia do que poderia supor a vã filosofia

Quem sabe, sabe

A coisa anda mesmo sem limites, no Brasil. A manchete de um portal diz que ministro da Economia, Paulo Guedes, o famoso Posto Ipiranga, está disposto a “dar 20 por cento do pré-sal aos estados em troca de votos para aprovar a reforma da Previdência”. Como assim, ele “dá” 20 por cento? Ele é o dono do pré-sal? É encarregado constitucionalmente de fazer a partilha das riquezas minerais do país? E pode trocar por voto dos parlamentares?

Já o ministro da Educação, acompanhado do capitão-presidente, anuncia que vai deixar morrer à míngua os cursos de filosofia, sociologia e ciências humanas em geral. Ele é diplomado em uma ciência pra lá de exata, Economia. Se você fizer uma pergunta para dez economistas -sobre qualquer coisa, por exemplo o aumento do desemprego, receberá dez respostas diferentes, mas a exatidão da ciência é assegurada porque todos eles tem certeza absoluta de que a sua resposta é a única correta. E talvez todos concordem que uma família de agricultores ficaria muito triste se o filho se formasse em antropologia, como exemplificou o ministro.

Isso me lembra o saudoso Millôr Fernandes, que dizia: “fique tranquilo, sempre se pode provar o contrário”. No Brasil, a verdade é vendida pelos camelôs em quaquer esquina. Vejam: o capitão-presidente foi eleito pelos que consideravam o programa Bolsa-família um incentivo à vagabundagem e agora, com três meses no cargo, ele anunciou que vai dar um “décimo-terceiro” em cada bolsa no final do ano. E quem batia palmas antes, continua batendo palmas agora, eis a prova da coerência.

As redes sociais disseminaram um novo paradigma: a verdade é aquilo que eu digo, no momento em que digo. Não vou chamar isso de uma nova filosofia, pra não ofender. É mais do que isso, uma nova ciência da ciência. E os políticos, de todos os partidos, são os detentores desse admirável saber.

É por isso que recebemos com naturalidade a noticia de que o senador Petecão aprova a nova tecnologia de asfalto da Prefeitura de Cruzeiro do Sul. Claro, quem pode entender mais de asfalto do que um senador? Só um ministro ou o próprio presidente.

É com essa autoridade científica que os senadores Flavio Bolsonaro e Marcio Bittar, após muitos anos de pesquisa e acurados estudos, publicaram um artigo provando definitivamente que o aquecimento global não existe e a proteção ao meio ambiente não passa de uma manobra do comunismo internacional para impedir o progresso do Brasil. Eles sabem o que estão dizendo, simplesmente porque são senadores e não apenas porque um é advogado e entende tudo de manobras e o outro é pecuarista, conhece a relação entre a camada de ozônio e o gás emitido pelo pum das vacas. Com conhecimento vasto e profundo proporcionado pelos votos que receberam, estão aptos a concluir que toda a conversa ambientalista não passa de uma sequência de mentiras: “preservação do Mico-leão-dourado, destruição da camada de ozônio, fim da biodiversidade, superpopulação, Amazônia pulmão do mundo, entre outras trapaças repetidas”.

Nunca fui eleito, até meus candidatos só pegam balsa, portanto não posso alcançar toda a profundidade do artigo, que só há de ser inteiramente entendido pelos cérebros privilegiados que estão acima e além da ciência mundana. Mas quero destacar três frases que me impressionaram muito.

A primeira é simples, até eu posso compreender em parte. “Basta pesquisar para saber que o homem é capaz de alterar o clima local, mas, não o clima global”. Sim, podemos dispensar o Impa, pois essa é uma pesquisa que que qualquer um pode fazer: eu altero o clima do meu quintal, o pecuarista altera o clima da sua fazenda e, juntando todos os habitantes do Acre (os que fazem fogueirinhas urbanas com as folhas das fruteiras ou grandes queimadas rurais para ampliar o pasto) talvez consigamos provocar uma pequenina mudança bem localizada, nessa pontinha da Amazônia. Mas mesmo juntando os esforços de todos os habitantes da Terra, de São Paulo à Groenlândia, da China ao Havaí, não vamos mudar o clima global. E por quê? Acho que é porque só conseguiríamos influir na temperatura das regiões habitadas e, como sabemos, não mora ninguém nos oceanos que ocupam dois terços da superfície do planeta. Só pode ser por isso.

A segunda é mais complexa. “Houve momentos em que a produção dos homens era diminuta e o mundo mais quente”. O problema é que tenho poucas décadas de vida e não me lembro desse outro tempo em que o mundo era mais quente. Seria a Idade Média? O Pleistoceno? Não ouso pedir que os senadores cientistas facilitem a minha compreensão dizendo em qual época o mundo era mais quente, nós leigos temos que confiar na verdade revelada sem fazer muitas perguntas.

E a terceira, já me escapa totalmente ao entendimento. “Apesar do aumento de emissão de CO2, informam os cientistas, o mundo está passando por um resfriamento global”. Que ótima notícia! Vou avisar à minha mulher, não precisamos de ar-condicionado: tenha calma, o calor vai aliviar. Talvez precisemos de um aquecedor. Mas o que não entendo é a parte “informam os cientistas”. Que cientistas estão falando em resfriamento global? Certamente não são aqueles que, no debate internacional sobre mudanças climáticas, estão classificados como “negacionistas”, com suas alegações pseudocientíficas financiadas pelas grandes companhias do petróleo. E o resfriamento que “informam” não há de ser aquela teoria maluca dos anos 70 que previa uma iminente era glacial. De todo modo, quem sente cheiro de naftalina quando o Friale anuncia a chegada de um vento polar, pode acreditar sem muitos questionamentos nessa novíssima ciência que contraria o IPCC (Relatório da ONU elaborado por cientistas do mundo inteiro) mas não contraria os ministros do capitão nem seus grupos de pensadores de whattsapp.

O artigo científico-senatorial é importante para aprovação do projeto dos dois senadores, que extingue o limite de desmatamento nas propriedades rurais. Se aprovado, cada proprietário pode desmatar todo o seu terreno com a certeza de que não afetará o clima do planeta. Pode até queimar tudo, mas ninguém vai fazer isso porque a madeira ainda dá algum dinheiro, ao contrário da antropologia.

Prometo que não vou perguntar o motivo pelo qual o governador Gladson Cameli não está respeitando os cânones da novíssima ciência. Ele, que tinha extinto a secretaria dos povos indígenas e o Instituto de Mudanças Climáticas, vai recriar esses órgãos e pretende participar das negociações internacionais dando garantia de que vai promover o agronegócio sem desmatamento e com estrito respeito ao meio ambiente. O Acre vai continuar no programa de redução das emissões de carbono e terá acesso aos 200 milhões que já estão garantidos e que seriam perdidos caso o governo estadual passasse a acreditar que o aquecimento global é uma “trapaça”.

Duzentos milhões são uma verdade científica difícil de refutar. Talvez seja necessário pedir a ajuda teórica do chanceler Araújo ou do capitão-presidente. Em último caso, perguntar no Posto Ipiranga.

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