O que é um sonho para você? Para o policial militar Leandro Prior, de 28 anos, é pedir o companheiro em casamento em plena 23ª Parada do Orgulho LGBT na capital paulista, um dos maiores eventos do gênero em todo o mundo. E, preferencialmente, de farda. Filho de policial, Prior é soldado na corporação e — detalhe para ele, fator aparentemente essencial para outros — assumidamente gay.
Se depender da PM paulista, no entanto, o sonho terá que adotar outra roupagem e outro cenário. A corporação negou a solicitação feita na semana passada pelo soldado para que pudesse trajar farda no pedido ao namorado, Elton da Silva Luiz, 26, durante o evento. A alegação da PM é que não há brecha no regimento para que um policial use a vestimenta oficial em ocasiões do tipo, caso não esteja em serviço.
“A Polícia Militar tem um regulamento de uniformes (R-5-PM) em que estão previstas as situações em que o militar pode fazer uso do fardamento (…). Considerando que o uso do fardamento por Policial Militar em manifestações não está previsto no regulamento de uniformes, não há fundamentação legal para que seja autorizada a sua utilização, motivo pelo qual foi indeferido o pedido”, afirma a PM, em nota.
Ainda na nota enviada ao UOL, a PM afirma ser “uma instituição legalista, que tem como um de seus alicerces a dignidade da pessoa humana e não faz distinção de pessoa por sua orientação sexual ou identidade de gênero, incluindo os mais de 80 mil policiais militares de São Paulo”.
Menção a Stonewall e a homofobia após selinho no metrô
No ofício à corporação, semana passada, o policial pedia autorização para usar a farda e destacava que a 23ª edição da Parada homenagearia os 50 anos da Batalha de Stonewall — série de manifestações de membros da comunidade LGBT contra uma invasão da polícia de Nova York, em junho de 1969, no bar Stonewall Inn, em Manhattan, na cidade de Nova York. Ele ainda ponderou, no documento, que fossem consideradas as situações de homofobia pelas quais afirma ter passado na PM nos últimos 12 meses.
Em junho do ano passado, Prior ficou conhecido nacionalmente ao ter sido filmado, sem saber, dando um selinho no então namorado. O vídeo circulou em grupos de WhatsApp de policiais militares, e o soldado passou a receber ameaças e ofensas, virtuais e físicas, de caráter homofóbico. Autorizá-lo a usar a farda para pedir a mão do companheiro, portanto, poderia ser, avaliou no ofício aos superiores, “excelente oportunidade à instituição para ela evidenciar e acenar à sociedade paulista e brasileira que não compactua com a homofobia”.
“Para mim era importante o gesto, porque seria a realização de um sonho. E todo ser humano tem um sonho — seja hétero, gay, lésbica, branco, negro, católico, protestante ou muçulmano. Eu tenho os meus”, desabafou o soldado, em entrevista a Universa.
“Se fosse hétero, PM nem pediria autorização”
Prior passou por meses de tratamento contra uma síndrome do pânico, segundo ele, gerada à época das ameaças por conta do beijo no namorado. Passou por punições disciplinares, mas não viu respostas da corporação aos policiais que apontou como autores de algumas das ameaças sofridas.
“É inadmissível que, em pleno século 21, eu seja impedido de realizar os meus sonhos simplesmente pela minha orientação sexual. É inadmissível que qualquer outra pessoa, na minha condição, passe por isso — se eu fosse um homem hétero pedindo a mão da minha namorada, fardado, nem autorização eu teria que pedir. Em 188 anos de PM-SP, pelo menos, não conheço um único caso de policial hétero que tenha feito o mesmo tipo de pedido que eu, por precaução, fiz. Muito menos sei de algum deles que tenha sido punido por isso”, complementa. “E se eu fosse hétero?”, questionou.
A reportagem então quis saber: caso namorasse uma mulher, também pediria autorização da PM para se fardar e pedi-la em casamento? “Não. Eu simplesmente faria o pedido trajando a farda. Só protocolei o ofício para me resguardar de eventuais preconceito e homofobia institucionais, caso viessem a ocorrer”, define.
Na internet, é possível encontrar uma série de vídeos de PMs fardados, mesmo em eventos da própria corporação, pedindo as namoradas em casamento. Questionada sobre o assunto, a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo não respondeu se há registros de outros policiais militares que tenham pedido autorização para se casarem fardados.
“Há homossexuais e heterossexuais nas polícias”
O episódio do ano passado trouxe uma série de intempéries a Prior. Por outro lado, deu ao soldado a oportunidade de representar outros agentes públicos de segurança declaradamente homossexuais. Hoje, ele é coordenador nacional da pasta de segurança pública da ONG Aliança Nacional LGBTI+. “Há heterossexuais e também homossexuais nas polícias. Gostaria de dizer a todo agente, independente da orientação sexual, que sonhem — e não permitam que a opinião do outro suprima a sua felicidade.”
Se o pedido de casamento será feito? “Com toda certeza. A diferença é que agora não será mais surpresa”.
O ofício foi protocolado por Prior à PM no último dia 14. Como esperava fazer uma surpresa ao futuro noivo, não disse uma palavra a ele a respeito. Nessa quarta (19), se surpreendeu ao perceber que, mesmo sem ainda ter tido uma resposta, o ofício já circulava em grupos de PMs no WhatsApp. A certeza do vazamento viria à noite, quando repórteres passaram a enviar a ele mensagens indagando sobre a iniciativa. Horas depois, a PM indeferiu o pedido.
Defesa vai recorrer de decisão
O advogado de Prior, Antonio Alexandre Dantas de Souza, afirmou ter orientado o soldado a fazer requerimento junto ao comando da PM e se disse surpreso com a negativa. “Há inúmeros exemplos de policiais que fazem pedidos [semelhantes] fardados. Das mais criativas formas, chegando, em alguns casos, a policiais utilizarem viaturas ou na companhia de outros membros da polícia”, citou. “Para o Prior foi um choque, pois ele realmente esperava poder demonstrar seu orgulho em pertencer as forças de segurança e também por poder demonstrar seu amor de forma livre.”
De acordo com Souza, entretanto, a resposta da PM sobre o regimento não trata de “proibição”. “Logo, pode ser permitido. Não se trata de um ato político por parte do Prior, como nos alegaram, mas sim algo muito mais intimista para ele”, definiu. O advogado disse que vai apelar da decisão.
“No momento, por não ter tido acesso a decisões de pedidos semelhantes, não posso afirmar que houve uma decisão motivada por questões homofóbicas. Porém, causa estranheza a quantidade absurda de atos semelhantes a este sem que a Polícia tenha se manifestado contrariamente”, ressalvou.
Na nota à imprensa, a PM ressaltou, ainda, a necessidade de reforço no efetivo na capital em função de dois grandes eventos no período de 20 a 23 de junho: a Marcha para Jesus [realizada nessa quinta, dia 20] e a 23ª Parada LGBT +., os quais “estimam atrair cerca de 5 milhões de pessoas, havendo necessidade de reforço no policiamento, bem como emprego de todo o efetivo disponível”, completa a nota. Leandro Prior foi escalado, nesta semana, para trabalhar num batalhão na região da Cracolândia, no centro de São Paulo.