‘La Casa de Papel’ faz discurso subversivo e cita o Brasil

Um grupo de homens e mulheres, liderados por um estrategista apelidado de professor, invade a Casa da Moeda e imprime milhões de euros com a intenção de roubá-los. A série que traz essa história, “La Casa de Papel”, fica famosa, e seus personagens serão tratados como heróis. Até aqui não é novidade que uma história tenha protagonista de moral duvidosa, porém capaz de criar empatia no público.Tony Soprano (o mafioso da “Família Soprano”) e Walter White (outro mafioso, de “Breaking Bad”) estão aí para provar o fascínio que bandidos inteligentes, especialmente se dispostos a sacanear alguém pior que eles, causam na gente. Mas “La Casa de Papel” tem um elemento a mais a ser questionado. “Vocês concordam que, neste caso, quem está sendo prejudicado, quem está sendo roubado, é o próprio povo espanhol?”, este repórter questiona a quatro atores do elenco da série, destacados pela Netflix, que a exibe, para dar entrevistas durante o lançamento da terceira temporada, na noite de quarta (17), em Bogotá. Estavam presentes Alvaro Morte, o professor, além de Alba Flores, Darko Peric e Hovik Keuchkerian, que interpretam personagens no time de ladrões. A estreia da nova temporada está programada para esta sexta-feira (19), no serviço de streaming. Morte diz que o que a série pretende rever é “onde está essa linha que determina quem são os bons e quem são os maus.” O ator também usa como argumento para defender seu personagem o fato de que eles, nas duas primeiras temporadas, não levam para casa “um valor que pertença a alguém”. “Eles imprimem dinheiro à parte.” Bom, na terceira temporada o plano é roubar o Banco de España.Cabe pensar também, diz Morte, que “aqueles personagens não estão apenas roubando”, eles “estão tentando demonstrar algo, investindo contra um sistema que é abusivo, que é opressor, que é injusto”. “Dessa perspectiva, o público pode sentir-se identificado com eles”, completa. Alba Flores, jovem atriz que descende de uma família de cantores famosos não apenas na Espanha, onde ela nasceu, mas em vários países latino-americanos, intervém: “acredito que, sim, há controvérsia. Mas também há uma pergunta no ar. Essa não é uma série realista, é uma ficção que, como tal, tem muitas licenças. Com ela, todos desfrutam da possibilidade de se distanciar da realidade e poder dar uma volta para se perguntar: quem são os maus e quem são os bons?” A pergunta é possível. Tanto que um aglomerado de colombianos começou a gritar em coro “Berlim, Berlim, Berlim, Berlim”, quando Pedro Alonso chegou para a cerimônia do tapete vermelho organizada pela Netflix no centro de Bogotá. Berlim é o nome do personagem interpretado por Alonso, um sujeito que mantém por semanas, sob a mira de sua arma, um grupo de reféns. E que manda executar uma das mulheres que tenta se rebelar.Depois, ela acaba conquistando os bandidos e entra para o time. Ganha o apelido de Estocolmo, em referência à síndrome de Estocolmo, do refém que se apaixona pelo sequestrador. Todos os bandidos da série têm como apelido o nome de uma cidade. A terceira temporada (ou ao menos até seu terceiro episódio, a que este repórter teve acesso) parece conter algumas revisões sobre o posicionamento político desses personagens tragicômicos que, sim, são uma espécie de imorais protegidos pelas licenças de um novelão. Em uma das cenas, o professor vai usar dirigíveis para jogar milhões de euros sobre Madri, como se estivesse devolvendo ao povo parte do dinheiro roubado. “Hipocrisia dele manter outra parte?” “Não acho que exista hipocrisia no professor, acho que tudo o que ele diz, ele diz de coração. Creio que é um idealista e que há muita filosofia no golpe que ele dá”, defende Morte. Os discursos subversivos passam a avançar sobre praças públicas agora, com os bandidos já ricos e dispostos a projetar, clandestinamente, suas imagens em grandes edifícios da capital espanhola. Eles vão surpreender o poder público discursando para uma multidão admirada, usando, como escudo, a máscara que é marca do grupo, onde se imprime o rosto do pintor Salvador Dalí. No meio de um dos discursos há menções a manifestações populares ao redor do mundo, e então o Brasil entra em cena, como exemplo de um país cuja população investiu contra a corrupção. Não seria ingênuo da parte dos roteiristas, neste momento, falar de um movimento que impulsionou a candidatura de Jair Bolsonaro, bem como de outros políticos alinhados à direita com o presidente? “Em nenhum caso essa é uma série que pretende apoiar um movimento político específico”, diz Flores, que na série interpreta Nairobi. “Muitíssimo menos, pessoalmente posso dizer, quando se trata de um movimento de extrema-direita.” “O que se mostra na série não tem a ver tanto com a materialização de movimentos específicos, mas dos movimentos populares em si. Lembrando que o direito de protesto é totalmente legítimo sempre.” No meio dos pastelões, houve ao menos uma interpretação política mais incisiva sobre a série. Na Turquia, um analista político alinhado ao governo totalitário de Recep Tayyip Erdogan apontou no ano passado que havia mensagens subliminares, pró-oposição, em um vídeo promocional de “Casa de Papel” produzido especialmente para o país. No vídeo, pessoas vestidas com as mesmas roupas usadas pelos ladrões no assalto à Casa da Moeda (macacões vermelhos e a máscara de Dalí), andam pelas ruas de Istambul, muitas delas portando alto-falantes. Seria uma referência à censura promovida por Erdogan contra jornais, editoras, escritores, artistas -muitos deles presos pelo governo simplesmente porque disseram algo? Os atores de “La Casa de Papel” dizem que chegou a eles a notícia de que o governo turco se preocupou com esse vídeo promocional. “Se esta é uma série que de alguma maneira traz algo subversivo, se isso inspira as pessoas a colocarem em questão quem está no poder, convidar as pessoas a pensar é sempre bom”, diz Flores. “Se aqueles que estão no poder não podem ser questionados pelo povo, então que valor têm?”

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