O Espírito da Coisa: uma viagem pelas memórias da capital

A passear lembranças

Faz algum tempo, ainda na minha já quase distante juventude, tomei consciência de que era um incorrigível saudosista. Cheguei a fundar uma corrente político-filosófica, o saudosismo dialético, liderada pelo guru reptiliano Jack Fontenele -cuja história alguns poucos remanescentes dos anos 80 ainda lembram e prometo contar qualquer dia desses. Por hoje, fiquemos com outras lembranças, ainda mais antigas, que me foram trazidas por um mototaxista em uma dessas viagens ao centro da cidade que faço eventualmente por alguma extrema necessidade que me leve a descer a montanha.

Paramos em frente ao “antigo Mirashopping”, ali ao lado da Prefeitura, mas antes de dobrar a esquina ele começou o papo: apontou o prédio velho e perguntou “lembra do Cine Acre?”-e lembrou de matinês e matinais que reuniam a criançada antes que a programação descambasse para filmes de luta e pornô. Acreano velho do pé rachado, certamente. Pra calcular a idade dele, perguntei se tinha assistindo “Coração de Luto”, com o saudoso Teixeirinha, e ele disse que sim. Não perguntei se ele tinha chorado, porque já sei que responderia “eu não, mas meus amigos todos choraram na cena em que ele chega em casa e a mãe está morta”, que é a resposta de 99% dos meninos daquela época, eu inclusive. Esqueci de perguntar se ele tinha assistido “O Ébrio”, do também saudoso Vicente Celestino, um dramalhão do mesmo naipe da canção homônima cuja introdução decorei e declamei de copo na mão em tantas noites no Girau, Casarão e bares anteriores, todos já extintos e sepultados na memória da província.

Em frente ao Mirashopping, onde hoje funciona um importante setor da Secretaria de Educação, que frequento com relativa assiduidade pois abriga o clube de Xadrez, o olhar do acreano velho brilhou por trás do visor do capacete. Vim muitas vezes aqui -ele disse-, naquele casarão de madeira em que ficava a Miragina. Lembramos do banheiro fedorento, de tábuas velhas, suspenso sobre o abismo profundo do quintal cheio de pés de mamona.

Mas ele disse que não lembrava do tempo em que o prédio da Prefeitura ainda era o Hotel Chuí. Ah, então certamente não conheceu o restaurante Tapiri, que o saudosíssimo Garibaldi Brasil fundou entre as mangueira no lugar em que hoje fica a Casa Rosada ou Esverdeada ou como quer que chamem o tal escritório de governo, onde ficou o gabinete do governador desde a gestão de Orleir Cameli -uma transferência que parecia ser provisória, para reformas no Palácio Rio Branco, e quase fica definitiva.

Louve-se, aliás, a saudável atitude do atual governador, Gladson Cameli, que recoloca no lugar o que foi tirado pelo tio e traz de volta ao velho Palácio a condição de Sede e símbolo do poder político. Certamente o mototaxista saudosista gostou. Também gostei, mas ainda sonho com um bom filme de Tarzã no Cine Acre e de bangue-bangue no Cine Rio Branco.

E tenho visto, nas redes sociais, uma pá de gente que guarda na memória -e de vez em quando mostra em maravilhosas e amareladas fotografias- as aventuras e desventuras que um dia passou nesses antigamentes. Vou renovando as lembranças, com a sustância do passado alimentando o futuro. É bom encontrar mais gente que também lembra. Saudososistas, unidos, jamais serão esquecidos.

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