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“Eu sobrevivi”, diz mãe que perdeu um filho por suicídio e outro por assassinato no Acre

Por EVERTON DAMASCENO, DO CONTILNET

O Setembro Amarelo é mais um campanha que vem mobilizando milhões de pessoas em todo o país na prevenção do Suicídio – o fenômeno letal que é a causa mais de 800 mil mortes por ano em todo o mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OSM).

Nesse sentido, para ajudar na expansão do projeto e na conscientização das pessoas a respeito do assunto, alertando sobre a importância de acolher o sofrimento alheio, a nossa reportagem procurou a estudante de Psicologia, Ofélia Contreiras, para que ela constasse a sua história como “sobrevivente”, frente à morte por suicídio de um de seus filhos e o assassinato do outro, que teve a vida ceifada em frente ao avô paterno – o que foi fator para o surgimento do processo depressivo do primeiro.

“A minha vida foi sempre de muito trabalho para dar o melhor a eles. Tudo corria muito bem, mesmo com alguns estresses do dia-a-dia”, contou antes de falar sobre as perdas.

Ofélia é estudante de Psicologia/Foto: Reprodução

Primeira perda

Era 17 de setembro de 2013, o dia do aniversário da mãe de Ofélia, quando o seu filho mais velho, Heitor Contreiras, com 27 anos na época, saiu de casa em sua moto para encontrar um “amigo”. Chegando ao local, após uma discussão com o “parceiro” por conta do transporte, foi alvejado com um tiro na cabeça, que lhe tirou a vida em poucos segundos.

O avô de Heitor estava próximo do neto e presenciou o ocorrido.

“Naquele momento, meu pai estava ali quando meu filho foi assassinado. Foi até a nossa casa e deu a notícia, com uma coragem que não sei de onde ele tirou”, acrescentou. “Vi uma das pessoas mais importantes da minha vida indo embora, sem explicação alguma, deixando muita dor em mim. Fiquei desesperada”, disse.

O ocorrido foi “traumático” para a família, que mesmo sofrendo muito, conseguiu voltar para a rotina alguns dias após a fatalidade – o que não aconteceu com Lucas, o filho mais novo de Ofélia e irmão de Heitor, na época com 18 anos.

Heitor e Lucas/Foto: Reprodução

Início da depressão

“Mesmo com todo o sofrimento que estava presente em nossos corações, seguimos com a vida, aprendendo a lidar com o luto um dia de cada vez. Mas, com o Lucas não foi assim. Era tudo mais intenso. A impressão que eu tinha era a de que nele a saudade machucava mais, sabe?”, explicou.

Ofélia disse que Lucas começou a se isolar e perder o contato com os amigos, e também pediu para não voltar a estudar naquele período: “Foi se afastando de todo mundo e um dia me disse que precisava sair da escola pelo menos naquele ano, pra dar conta do que estava sentindo”.

Preocupada, a mãe atendeu o desejo do filho, entendendo que naquele momento a pausa era necessária: “A dor dele era mais importante. Eu não podia negar isso. Não tinha como pagar um psicólogo, pois estávamos recomeçando a vida depois de uma separação e da morte do irmão. O melhor que podia fazer era aquilo, além de ficar mais tempo com ele, dando suporte”.

Contreiras enfatizou que por muitas vezes ouviu Lucas falar sobre a saudade que sentia do irmão e não querer mais viver.

“Várias vezes ele me dizia: ‘Mãe, eu não aguento de saudade’ ou ‘Tá doendo. Não quero mais viver’. Eu respondia que aquilo iria passar e que eu estava ali com ele e para ele, mas parece que não adiantava. O vazio persistia”, pontuou.

A estudante também argumentou que por várias vezes levou o garoto até os Postos de Saúde, o Pronto Socorro e outros centros, mas era informada que o quadro se tratava de uma Esquizofrenia: “Eu era leiga na época. Quando eu chegava a um local, a maioria dos profissionais me dizia que aquilo era esquizofrenia e que eu precisava ficar atenta pra não deixar que piorasse. Me orientavam a procurar um psicólogo ou psiquiatra, mas não tínhamos dinheiro na época. Dei o nome dele para ser atendido em uma clínica social, mas nunca chamaram”.

Em 2014, um ano depois da morte de Heitor, Lucas fez duas tentativas de suicídio.

Lucas cometeu suicídio quando tinha 22 anos/Foto: Reprodução

“Perturbador. Ele fez duas tentativas, uma seguida da outra, e nós não sabíamos o que fazer. Deixei de trabalhar para cuidar dele, e a tristeza aumentava nele e em mim. Meu filho era lindo, tinha os cabelos longos, gostava de sair com os amigos e tinha o sonho de ser piloto de avião. De repente tudo foi se perdendo, os sonhos, os desejos, as vontades, os projetos. Já não se cuidava mais, vivia dentro de um quarto bagunçado, não queria sair. Aquilo me deixava impotente”, disse emocionada.

Ofélia comentou que após as duas tentativas de tirar a própria vida e as inúmeras ideações suicidas do rapaz, resolveu “trocar a noite pelo dia”, com poucas horas de sono, para vigiá-lo, colocando a cama dele no seu quarto: “Quando eu podia dormir pela manhã, meus pais vigiavam e cuidavam dele pra mim, mas na madrugada eu ficava alerta para evitar qualquer coisa. Eu não podia perder outro grande amor da minha vida”.

Segunda perda

Era domingo, dia 28 de outubro de 2015, quando em uma tarde sentado com a mãe, Lucas volta a falar sobre o “vazio”, a “falta de vontade para viver” e a “saudade do mano”.

“Eu lembro perfeitamente dele com a cachorrinha de estimação que tínhamos na época, se despedindo dela. Eu dizia pra ele não falar aquilo, pois eu o queria vivo, comigo, mas insistia. Ele disse: ‘Mãe, hoje eu não quero mais viver. A vida é um vazio. Eu estou com muita saudade do mano’. Senti que estava eufórico aquele dia, andando de um lado para o outro com o animal nos braços”, lembrou.

Foi chegando a noite, e Ofélia disse que decidiu deitar com o filho para assistir um filme que passava na TV: “Me recordo muito bem dele deitado, falando sobre as mesmas coisas e com a cachorrinha no colo. Eu estava tão cansada que dormi, mas na ideia de que aquilo teria sido apenas um ‘cochilo’, de poucos minutos”.

O que deixou impressionada a estudante é que antes mesmo de acordar ela teve um sonho, quando viu na cena a imagem do filho em uma rua. “Perguntei pra onde ele ia e me disse que não morava mais ali”.

Nesse mesmo instante, a mãe acordou assustada se deparou com uma cena que disse nunca esquecer: o jovem filho de 22 anos morto a sua frente.

O tempo foi pouco, mas Lucas aproveitou o intervalo e tirou a própria vida.

“Eu estava anestesiada naquele momento. É como se eu estivesse desligada daquilo, mas ali, vendo tudo aquilo. Calmamente, me levantei da cama, coloquei meu filho nos meus braços e fiz até respiração boca a boca, mas vi que não adiantava mais”, continuou.

“Passou um filme na minha cabeça. Comecei a perguntar pra ele, que estava nos meus braços, por qual motivo ele havia me deixado, já que eu o amava tanto, por qual motivo havia deixado de viver se ele era a única força que eu tinha para continuar viva e firme”, descreveu.

Mesmo sem orientação, Ofélia carregou o filho até outro cômodo da casa, que na época era de dois andares, e acionou a polícia: “Tirei forças de onde eu não tinha pra chegar aos meus pais e contar tudo, ainda anestesiada”.

Ao presenciar o corpo do filho sendo levado pelo Instituto Médico Legal (IML) e os amigos do bairro desorientados com tudo aquilo, a estudante “desabou”.

“Meu mundo caiu naquela hora. Todo o choro que meu corpo e a minha alma tinham guardado, saiu. Eu me desesperei. Me perguntei o que eu faria a partir dali, como iria viver sem os meus filhos, convivendo com uma culpa que não era minha e nem de ninguém”, salientou.

A falta outra vez tomou o lugar do equilíbrio e Ofélia, como disse à reportagem, precisou se “reinventar”.

“No dia do velório dele, lembrei de uma promessa que havia feito no auge do seu sofrimento, o de cuidar de pessoas que precisam de ajudam, assim como ele precisou um dia e não recebeu, de uma forma profissional”, enfatizou.

“Eu sou uma sobrevivente”

A lembrança foi como um oásis no meio de um deserto para quem estava passando por uma “sequidão” – como a estudante se referiu ao seu estado na época, após perder os dois filhos.

“Eu não deixei de sofrer. Vivi o pior momento da minha vida. Era como se tudo tivesse se perdido e não houvesse mais esperança. Mas, pensar sobre a promessa me deu uma esperança”, disse.

Em fevereiro do ano seguinte, dois meses após o fato, uma força surgiu, e Contreiras resolveu cursar Psicologia na Faculdade da Amazônia Ocidental (FAAO).

“Coloquei a promessa como foco. Afinal, eu começava a me ver naquele momento como uma sobrevivente. Eu sou uma sobrevivente. Muitas pessoas precisavam de mim, da minha ajuda. Eu precisava me ajudar e me reencontrar”, acrescentou.

“Quero ajudar outras pessoas e montar uma associação”

Atualmente, Ofélia cursa o 4º ano de Psicologia e é estagiária no Leito de Saúde Mental do Hospital de Urgência e Emergência de Rio Branco (Huerb), onde atende pessoas com ideação suicida e/ou tentativas de suicídio.

“Eu tenho um compromisso hoje comigo mesma de ajudar as pessoas que sofrem quando perdem o sentido da vida e veem o suicídio como única possibilidade. Uma perda muita grande, que ainda me deixa com saudade, mas não me traz desespero, me trouxe um olhar diferente para as pessoas”, disse.

Ofélia é aluna do curso de Psicologia da FAAO/Foto: Reprodução

A profissional em formação disse que sonha em montar uma associação, depois que terminar o curso, para famílias enlutadas pelo suicídio: “Eu decidi ser muito melhor do que já fui um dia, mostrando as pessoas que elas podem ser ajudadas. Meu filho tirou a própria vida, mas eu renasci”.

Ao final da entrevista, quando recebeu a proposta de deixar uma mensagem aos leitores, Ofélia disse:

“Ensinem os filhos de vocês a perder. Mostrem que enquanto há vida, tem jeito. Tenham mais tempo para ouvir e dialogar. Não usem as redes sociais como única ferramenta de contato. Precisamos nos encontrar verdadeiramente, acolher com paciência e compaixão os sofrimentos, viver a felicidade e respeitar o tempo de cada um”, finalizou.

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