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Anvisa decide hoje sobre maconha medicinal e diretor indicado por Bolsonaro não descarta pedir vista

Por O GLOBO

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decide hoje sobre a regulamentação da produção, plantio e transporte da maconha medicinal por parte de empresas farmacêuticas e sobre o registro de medicamentos produzidos à base de cannabis.

A votação acontece em clima de divergência entre o governo , que é contra a regulamentação , e a diretoria da Anvisa , que pautou a discussão.

Inicialmente, o tema seria votado na terça-feira passada (8), mas a diretoria decidiu adiar a sessão para incluir sugestões de diretores da agência ao texto.

Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar uma das diretorias da Anvisa, o médico e contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres é visto como a voz do governo na discussão.

Em sabatina no Senado, antes de ser nomeado para o cargo, Torres defendeu que mais estudos antes da liberação do uso medicinal da planta.

Em entrevista ao GLOBO, ontem, Torres não descartou a possibilidade de pedir vista para avaliar melhor o tema e argumentou que chegou à agência quando a discussão já estava avançada.

O diretor nega que tenha recebido orientações do presidente para votar contra a regulamentação da maconha medicinal e disse que não foi colocado na diretoria para “embarreirar” o processo, como tem sido especulado.

Um eventual pedido de vista poderia adiar a votação em pelo menos duas sessões do colegiado, tempo que pode ser estendido caso haja necessidade.

A especulação era de que o conselheiro indicado por Bolsonaro fizesse a manobra na tentativa de adiar a votação até que o mandato de dois outros conselheiros expirasse. Torres nega que tenha essa intenção.

As propostas ficaram cerca dois meses sob consulta pública e receberam 1.154 contribuições. Segundo a Anvisa, no primeiro semestre do ano foram feitos 3.101 pedidos de autorização para importação de extrato de cannabis. No ano passado foram 3.613 solicitações.

O produto é utilizado, principalmente, para o tratamento de pacientes com epilepsia, dor crônica e autismo.

Atualmente, para importar medicamentos à base das substância, os pacientes precisam fazer uma solicitação formal à Anvisa. A autorização vale por um ano.

Uma das propostas da Anvisa prevê que o cultivo da planta deve ser feito em local fechado e atender a condições específicas de segurança.

A maconha produzida só poderá ser comercializada para uso em pesquisa e produção de remédios e não poderá ser vendida a pessoas físicas ou farmácias de manipulação.

Qual sua posição sobre a proposta que regulamenta o uso medicinal da cannabis?

Esse tema começou a ser conduzido já tem bastante tempo. Houve inclusive determinação judicial para que a agência regulasse esses produtos e tratasse desse assunto. Quando assumi minhas funções aqui na Anvisa, no dia 5 de agosto, já estávamos na fase de consulta pública (sobre o tema), que é uma das finais do processo. Depois da consulta, vem a compilação de dados. Subsequente a isso vem a fase de elaboração das resoluções das diretorias que são postas em votação. Não houve uma participação direta minha na condução desses processos, eu chego numa fase já final que é a fase de, como diretor, tecer análises e opinar nas minutas das diretorias para que possamos votar.

Então você pretende se debruçar mais sobre o tema?
Nós não manifestamos voto antes porque, quando ocorre antecipação de voto, isso gera consequências no mercado, nas pessoas que estão ansiando por uma resposta sobre isso. Como é um colegiado, e somos cinco, uma manifestação pessoal não necessariamente vai traduzir o que vai acontecer na reunião.

O que entendo é que um tema dessa complexidade… O que tem de diferente nesse tema em relação ao demais temas de insumo para tratar pessoas que estão doentes? É que a origem desses insumos vem de uma planta que é proscrita no mundo todo. Isso gera complexidade maior, porque é uma planta cujos derivados, se tiverem uso indevido, levam à drogadição. Isso cria uma necessidade de que o tema seja bem discutido e bem estudado, sob pena de que uma decisão tomada amanhã ou depois tenha que ser revista num curto espaço de tempo. Esses dois temas (plantio e regulamentação de medicamentos) têm sido alvo de intensas discussões. É imprevisível dizer hoje se amanhã conclui e está tudo votado. Somos cinco.

Mas você se sente preparado para votar ou cogita pedir vista?
As duas possibilidades existem, porque, na medida em que se analisa processos, você fica diante de dois caminhos: ou você concorda com ele ou não. Mas faço uma ressalva: uma coisa é concordar com o mérito, outra é aprovar o processo. Por vezes, pode ter um mérito que você, pessoalmente, concorda, mas você não está avaliando isso. Você está avaliando o processo que foi construído. Quando ambas as coisas interagem positivamente, você pode votar a favor. Mas, se você concorda com o mérito, mas entende que o processo pode ser aprimorado, ou você vota contrário ou você pede um tempo para análise, que é o chamado pedido de vista.

O pedido de vista é uma ferramenta disponível para qualquer diretor. Nenhuma possibilidade está descartada. E o fato de pedir não significa, contrariando o que vem sendo publicado, que isso é uma técnica para embarreirar (a discussão do tema). Um eventual pedido de vista tem prazo regimental de duas reuniões do colegiado para ser tratado, mas é óbvio que pode haver algo diferente disso se quem pede vista demanda outras diligências ou informações.

É importante frisar que estamos discutindo saúde de seres humanos e não assuntos menos nobres. Então, este processo e qualquer outro precisa estar realmente em condições perfeitas de ser votado. A premência que temos é que há pacientes que estão sofrendo processo longo e caro de importação desses remédios e que precisam de uma resposta, nós reconhecemos isso. Agora, quando elabora-se uma resolução com força de lei, abrange-se toda uma população, então é importante que esse processo esteja devidamente adequado e em condições de ser votado.

Você discorda de como foi conduzido o processo sobre esse tema?
Todo medicamento passa por um processos de registro que envolve estudos clínicos e não clínicos, de fase um a quatro. Mas a natureza não anda segundo processos. Surgem doenças, situações e aparecem substâncias que ainda não tiveram tempo necessário para cumprir o rito na sua totalidade. Então, existe a possibilidade de que substâncias que vêm mostrando resultados favoráveis tenham registro sem rito completo, isso é possível. A segurança é total? Não, mas é possível pesar o quanto de bem é possível levar ao paciente precisando daquela medicação. Há estudos que mostram a possibilidade de tratar crises convulsivas extremamente graves (com cannabis). Se há alguma substância que pode reduzir essas crises, como é o caso de relatos de famílias que usam derivados da cannabis, então há previsão legal para isso. O que agência está buscando é dar um passo além, fornecer o registro para que o paciente possa ser beneficiado.

E o país está preparado para dar o passo além?
Sim, porque o registro é um mecanismo legal para que as pessoas tenham esse benefício.

E em relação ao plantio?
O plantio envolve questões, inclusive do setor produtivo. Há correntes que falam sobre o país passar a ter um ganho efetivo com essa atividade, inclusive de exportação. É uma possibilidade, mas há que se ter um regulamento de segurança muito grande para evitar o desvio. No Brasil, a droga mais difundida é a maconha. Então, digamos que o interesse da criminalidade por eventuais áreas de cultivo (pode ser grande). Há que se ter um arcabouço de segurança muito sólido, para que não se tenha desvios e, no afã de resolver um problema, a gente crie outro. Há como ter condição de segurança para praticamente tudo, o que é preciso ver é se temos condições de reunir essa segurança. E, se sim, essa produção vai gerar as divisas e os empregos que estão apontados que serão gerados? Vamos ter no Brasil empresas interessadas ou apenas interesse do exterior? São perguntas que também fazem parte do nosso raciocínio. Mas, em tese, não a uma atividade que possa ser descartada.

É provável que haja uma decisão sobre o tema ainda nesse ano?
Penso que sim.

Você mencionou que sua vinda para a Anvisa foi relacionada a uma tentativa de embarreirar o processo de regulação. Você se considera uma voz dissonante na agência sobre o tema?
Não. Sou muito bem recebido aqui, tenho trânsito com todos. Mas também gostaria de dizer que o consenso é péssimo, principalmente em ciência. Dissonar é uma coisa boa. Não me considero dissonante, mas posso ser em discussões amanhã ou depois, e isso é saudável.

Há uma visão de que você é uma voz do governo dentro da Anvisa sobre esse tema e o governo tem sido contra a regulamentação…
Não posso dizer que recebo isso com satisfação, porque não é um entendimento verdadeiro, mas não perco hora de sono com isso. É um direito na democracia exercer um livre pensamento, embora exagerem um pouco no livre exercício quando imputam a você coisas que você nunca disse. Recentemente, em uma revista de grande circulação, foi colocado que eu vim para cá para embarreirar o processo. Eu não tenho esse poder nem se eu quisesse, porque são cinco diretores. Segundo, nunca recebi nenhuma orientação do governo no sentido de votar assim ou assado, jamais, em tempo algum. O único pedido que recebi do presidente Jair Messias Bolsonaro foi “Barra, lá é para trabalhar no patriotismo, pelo Brasil. Espero que você se dedique lá como se dedicou nos 32 anos que trabalhou na Marinha”. Foi a única coisa que me disse sobre meu trabalho. Conheço as opiniões do ministro Osmar Terra, mas são as opiniões que ele coloca e eu respeito. Como também há opinião do ministro da Saúde em relação a esse tema. Mas há uma autonomia dentro da agência. No dia da minha sabatina (no Senado), na Comissão de Assuntos Sociais, eu recebi 19 votos a zero, então alinhamento partidário não é um adjetivo que possa ser imputado a mim, e no plenário foram 61 votos a 3. Ali estavam partidos da situação e da oposição.

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