Ao desembarcar em Rio Branco nos primeiros anos da década de 1990 para ser procurador da República no Acre, o candango nascido em Brasília em 1962 Luiz Francisco Fernandes de Souza mantinha-se fiel aos votos de castidade e pobreza feitos num seminário de Curitiba (PR). Nos pés, apenas um par de sapatos de causar dó, de tão usados. Na mala, apenas dois ternos surrados, na cor preta.
Tamanho desapego e com tanto tempo livre para atuar no combate ao crime no Ace, já que não tinha família, amigos ou conhecidos no Estado e morava na própria sede do Ministério Público Federal (MPF), então situado na Avenida Getúlio Vargas, no centro de Rio Branco – dali não saindo nem para fazer refeições e só comia biscoitos e outros produtos prontos, temendo ser envenenado, o procurador com jeito de esquisito, ganhou fama, a partir do Acre, de “caçador de corruptos”.
Isso porque, uma vez instalado no Acre, os primeiros a entrarem eu seu radar foram ninguém menos que o então governador Orleir Cameli (1995 a 1998), o então deputado federal Hildebrando Pascoal, cassado e preso em 1999, e o então presidente Fernando Henrique Cardoso, principalmente pelo chamado escândalo da reeleição, em que deputados do Acre foram pilhados em gravações clandestinas confessando terem recebido, a partir da iniciativa de ministros de FHC e com a aquiescência do próprio presidente, a quantia de R$ 200 mil (numa época em que R$ 1 Real valia 1 US$). A aprovação da emenda da reeleição beneficiaria diretamente o então presidente com um novo mandato, com a aprovação da reeleição.
Como os deputados envolvidos eram do Acre – João Maia, Ronivon Santiago, Chicão Brigido e Osmir Lima, além de haver indícios de que o autor das gravações, um certo “Senhor X”, seria a do empresário Narciso Mendes de Assis, todos envolvidos com a política local. O procurador tentou investigar o caso e trombou de frente com o então procurador-chefe, Geraldo Brindeiro, ligado à FHC e ao PSDB e não por acaso chamado de “Engavetador Geral da República”, por sua incrível capacidade de mandar arquivar ou não deixar prosperar ações envolvendo o então presidente.
Luiz Francisco atraiu a atenção – e a ira! – do próprio FHC, que o chamou um dia de “Quasímodo”, personagem central do livro “Notre-Dame de Paris”, da autoria de Victor Hugo, publicado em 1831, que conta história de um corcunda de nascença, que habita o campanário da Catedral de Notre-Dame de Paris, vivendo afastado da sociedade e temido pelos habitantes locais. O personagem foi adaptado inúmeras vezes, principalmente no cinema. Em 1996, a Walt Disney lançou a versão animada do romance, com variações no enredo, que foi posteriormente incluído entre seus Clássicos. Ficção pura.
Na dura realidade do enfrentador de corruptos, Luiz Francisco parecia mesmo com o personagem citado por FHC: vivia isolado e só deixou de mandar o motorista do MPF comprar os biscoitos com os quais se alimentava (alguns amigos de sua confiança, que já fizera no Acre, ao saber de sua situação, chegavam a levar comida pronta a sede do órgão), quando a Polícia Federal gravou o funcionário em telefonemas ao então deputado federal Hildebrando Pascoal, investigado pelo procurador por conta das chacinas que ocorreram o Acre após a morte do então tenente e vereador Itamar Pascoal, irmão de Hildebrando. O funcionário foi demitido a bem do serviço público.
O então governador Orleir Cameli também não saia de seu radar. Consta que foi Orleir, acompanhado de toda a bancada do Acre na época – deputados e senadores (a única exceção foi a então senador Marina Silva), que conseguiu a remoção de Luiz Francisco de volta a Brasília.
Já em Brasília, mantendo os mesmos trajes e os votos de pobreza, ele agora dirigia um baqueado fusca vermelho – talvez referência aos tempos em que era filiado e militante do PT, militância da qual ele só se afastaria formalmente ao passar no concurso da PGR (Procuradoria Geral da República).
De volta a Brasília, ele manteve Hildebrando Pascoal sob sua observação e também voltou suas ações para o então senador Luiz Estevão, eleito pelo Distrito Federal, que acabou cassado e preso, e também conseguiu a renúncia do então senador Antônio Carlos Magalhães, acusado de violar o painel do Senado Federal. Novas ações contra Fernando Henrique Cardoso e seus ministros, que resultaram em acusações sem provas e suas irrefutáveis relações com o PT, deixaram o procurador em mus lençóis e ele teve que enfrentar um longo período de ostracismos.
Mas está de volta e acaba de conceder uma entrevista exclusiva ao portal UOL, em Brasília, no qual não poupa o presidente Jair Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Sérgio Moro e seu colega de PGR Daltan Dallagnol. É duro com o colega e diz ter vergonha de fazer parte da mesma instituição que o coordenador da Força Tarefa no Paraná. Sobre Bolsonaro, diz esperar que ele sofra um impeachment e também crítica Lula por ter se permitido receber mimos de empreiteiras.
Ao que tudo indica, o procurador que é um velho conhecido dos acreanos, não mudou nada. Mora numa cidadezinha de Goiás, nos arredores de Brasília, numa casa de três pisos, literalmente cheia de livros e gatos. Ele próprio é autor do livro “Socialismo: uma Utopia Cristã”, de 850 páginas.