Uma plateia composta por juristas – juízes, promotores, procuradores de Justiça e desembargadores, além de advogados – lotou o teatro da Universidade Federal do Acre (Ufac), na noite desta segunda-feira (20), para ouvir palestra do historiador Leandro Karnal, professor da Universidade de Campinas (Unicamp). Aos 57 anos de idade, o conferencista e autor de mais de 20 obras e que vive a proferir palestras ao redor do mundo veio a Rio Branco (AC) a convite do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) para falar sobre “Cidadania e o Serviço Público”, como parte das comemorações dos 56 anos de fundação da instituição no Estado.
O palestrante Leandro Karnal é gaúcho de São Leopoldo e nascido em 1963. Além de historiador especializado em história da América, é autor de uma vasta obra publicada por diversas editoras, entre os quais “Estados Unidos: a formação da nação”, “Conversas com um jovem professor”, “História na sala de aula”, “As Religiões que o mundo esqueceu”, “O coração das coisas”, “O mundo como eu vejo”, “Diálogo de culturas”, entre outros.
Além de intensa participação em debates, o autor também foi curador de diversas exposições, como “A Escrita da Memória”, em São Paulo, tendo colaborado ainda na elaboração curatorial de museus, como o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. É graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP).
Na adolescência, o terceiro de uma família de quatro filhos de um advogado e de uma dona de casa, teve formação jesuítica e foi católico praticante durante a infância e parte da juventude, mas adulto se tornou ateu. No Acre, nos poucos instantes em que esteve em Rio Branco, buscou contato com a cultura da ayahuasca ou Santo Daime. Avesso às badalações, não concede entrevistas à imprensa nem permite que suas palestras sejam filmadas das ou gravadas. A imposição é uma das cláusulas do contrato prévio que ele assina com quem o contrata para as palestras.
No Acre pela primeira vez, o professor começou a falar a seus espectadores evocando o conterrâneo José Plácido de Castro, o gaúcho herói dos acreanos que livrou o Acre do jugo boliviano. Ele começou a palestra mostrando a bandeira do Império, criada por ordem de Dom João VI. “É uma bandeira do imperador para o Estado e não ao contrário”, disse, apontando o que considera o primeiro grande erro do Brasil. “Ao contrario da bandeira dos Estados, com suas 13 listras simbolizando as 13 colônias que deram origem aos Estados Unidos da América, país cujo Estado serve à sociedade, bem ao contrário do Brasil”, definiu.
Outro erro, ainda na origem do Brasil, de acordo com palestrante, pode ser ilustrado com o fato de que, ao chegar ao Brasil com a corte e a família real, em 1808, Dom João VI instalou-se na casa mais luxuosa do Rio de Janeiro na época, naquilo que seria a Quinta da Boa Vista. Acontece que o Palácio, na época, servia a um homem rico – o português Elias Antônio Lopes (1770 -1815). “A riqueza deste homem era do tráfico de escravos”, disse Karnal.
O historiador deu a entender que a apesar da origem espúria da riqueza do português, mesmo assim, o imperador do Brasil na época negociou com ele e o concedeu, por exemplo, o direito inclusive de cobrar impostos na região de Minas Gerais, além de lhe conceder o direito de explorar um cartório no interior do Rio. Para o palestrante, os desvios éticos no serviço público, tão comuns no Brasil, começaram com esses dois episódios.
E se acentuaram ao ponto de, no governo Sarney, quando não havia a figura do vice-presidente da República, já que o vice era o próprio José Sarney que havia assumido com a morte de Tancredo Neves, o então presidente da Câmara dos Deputados, José Paes de Andrade, do MDB, era o primeiro na linha sucessória e ele se aproveitou da condição para promover o primeiro grande escândalo da chamada Nova República. Cearence da cidade de Mombaça, assim que se sentou à cadeira presidencial durante uma viagem ao exterior do presidente José Sarney, o deputado convocou a FAB (Força Aérea Brasileira) e levou a família e um bando de apaniguados para se exibir na cidade natal coma faixa presidencial, tudo às custas do contribuinte.
Outro exemplo de falta de ética e respeito ao bem público deu-se, lembrou o palestrante, no Governo Collor, quando o então ministro do Trabalho, Antônio Rogério Magri, foi pilhado levando ao veterinário, em carro oficial, uma de suas cadelas de estimação. Questionado por uma repórter, o ministro tria dito justificado a ilegalidade afirmando que a cadela “também era um ser humano”, querendo dizer tratar-se de um ser vivo. “O que o ministro não atentou é que a ilegalidade não estava com o fato de ser uma cachorra, poderia ser uma pessoa da família dele. O que não poderia ocorrer era ser levada num carro oficial a serviço do poder público”, disse Karnal, ao mostrar que o país ainda enfrenta confusões entre o que é ser público e privado. O historiador não citou nomes das pessoas com as quais ele ilustrou suas palestras, mas as histórias e seus personagens são de domínio público.
A separação entre o público e o privado, entre o que é ético ou não, segundo ele, depende da ação individual de cada cidadão, de cada servidor público. O funcionário público é um ente estratégico da cidadania e deve se portar como tal e que o país precisa acabar com a cultura do “Você Sabe com Quem está Falando?”, porque “quanto mais alta a função do servidor público, maior seu grau de responsabilidade e ainda maior o que deve ser seu comportamento ético”.
O Imperador Dom João VI, na visão do conferencista, seria nada mais que o Jair Bolsonaro da época e disse que ,para se livrar de ações nefastas dos governantes, os funcionários públicos devem trabalhar com afinco e ética. “Se você é professor e quer se vingar de seu governante, dê aulas. Dê boas aulas e se vingue de quem você não gosta”, propôs Karnal, ao ressaltar que, apesar de tudo, sonha todos os dias com um Brasil e um povo dignos de sua grandeza. .