Na primeira entrevista exclusiva à imprensa do Acre, concedida ao ContilNet, a médica Mônica Kanaan, secretária de Estado de Saúde, que está no cargo desde maio deste ano e desde então debaixo de críticas severas e agudas, tanto do sindicato do setor como de deputados e outros membros da oposição ao atual governo, faz uma revelação surpreendente: ela está no cargo, trabalhando para o Governo do Acre, praticamente a custo zero, sem receber salário. Seu pagamento é feito pelo Governo do Distrito Federal, do qual ela é funcionária e foi cedida para o Estado pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), a pedido do governador Gladson Cameki (PP), com ônus para o governo distrital.
Outra revelação: ela não caiu de paraquedas no Acre. Primeiro, foi convidada e indicada ao governador Gladson Cameli graças a seu currículo de gestora na área. A indicação partiu de ninguém menos que o gestor de administração do Instituto Hospital de Base do Distrito Federal (IHBDF), general Manoel Luiz Narvaz Pafiadache, a quem, primeiro, o governador Gladson Cameli ousou peitar em trazer para o Acre para resolver o que ele mesmo chamou de “cabeça de burro” enterrada no sistema estadual de saúde. O general não aceitou o convite, mas disse ao governador que tinha um nome a sua altura no que diz respeito à gestão hospitalar, exatamente o de Mônico Kanaan.
A coincidência é que este nome não é de uma ilustre desconhecida para o Acre nem tampouco ela desconhecia o Estado e os acreanos. Mônica já foi médica no Acre por três anos e está aplicando todo o seu conhecimento para tentar mudar a dura realidade do setor de saúde do Acre, sob uma saraivada de críticas.
Na entrevista a seguir, ela nega que esteja trabalhando para terceirizar ou privatizar o sistema de saúde do Acre e diz que está aqui, sob o sacrifício de ter que viver longe do marido, que ficou em Brasília, cuidando de quatro filhos, porque gosta de desafios e do povo acreano. “Você acha que eu iria passar por tudo isso se achasse que o povo acreano não merece todo esse sacrifício?”, indagou ao repórter. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Quando foi que a senhora ouviu a expressão Acre, em referência a este Estado, pela primeira vez? Como foi sua reação a isso?
Mônica Kanaan – Acre foi uma expressão que entrou na minha cabeça pela primeira vez em 1998, quando meu marido foi transferido para cá…
Como é o nome do seu marido?
Reginaldo Machado. Ele é coronel aposentado do Exército. Na época ele era capitão e foi servir no 4° Bis e eu vim o acompanhando como esposa e como médica também e passei a trabalhar aqui. Trabalhei no Pronto Socorro, montei a UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) da Maternidade “Barbara Heliodora”, que está lá até hoje. Trabalhei em vários setores, no berçário da Santa Casa de Misericórdia, tinha consultório particular ali no Bosque e na Guascor do Brasil como médica do Trabalho. É por isso que eu já conheço todos os municípios do interior do Acre. Aqui fiquei até 2001, quando meu marido voltou para Brasília e nós permanecemos morando lá.
Como é que ocorreu a fixação do governador Gladson Cameli pelo seu nome? Como foi que ele a conheceu?
O meu nome foi cogitado lá em Brasília porque o governador, inicialmente, estava buscando um gestor experiente na área de saúde…
Ele teria convidado, antes da senhora, um general que é gestor do Instituto de Saúde do Distrito Federal, não é isso?
Exatamente. Ele chamou o general Pafiadache, que é um dos gestores do Instituto de Saúde do Distrito Federal. Ele não pôde vir e provavelmente me indicou. Eu era gestora lá, na área de Oncologia desde 2003, quando passei em concurso. Então o governador me chamou para conversar. Disse de suas dificuldades e me chamou para vir ao Acre. Eu também quis saber da situação através de profissionais que já estavam aqui e obtive um parecer assim bem superficial. Eu estava indo para São Paulo fazer mais um curso e aí desisti…
A senhora é mineira?
Sim, sou de Belo Horizonte… Ai eu vim aqui. Passei três dias observando, fui às Upas (Unidades de Pronto Atendimento), no Pronto Socorro…
Então veio assim que meio secretamente?
Não, exatamente. Eu vim conversar com pessoas. Conversei com o Alysson (Bestene, então secretário de Saúde)…
Mas ele ainda era o secretário…
Sim, mas não tinha razão de eu dizer que estava vindo para ser secretária – ate porque podia não dar certo. Aí tive uma visão, ainda que superficial, e resolvi aceitar o convite.
A senhora sabia que tinha todo este abacaxi para descascar?
Todo secretaria de saúde é abacaxi. Está muito difícil se fazer gestão em saúde em nível estadual porque os financiamentos são sempre bem abaixo…
Então os problemas no setor são por falta de recursos, de gestão ou há também problemas com falta de material humano?
Na verdade, é um bolo com falta de ingredientes nos quais uma hora falta isso, outra hora falta aquilo. Mas aqui o que faltava mesmo era gestão.
Então a senhora já achou a tal cabeça de burro que o governador disse haver sido enterrada no sistema de saúde do Acre?
(rindo…) Não sei se há cabeça de burro enterrada no sistema. O senhor tem que perguntar isso para o governador. Na verdade, eu trabalhei aqui esses anos todos, há 20 anos, e na época houve um financiamento muito grande do SUS (Sistema Único de Saúde) na época das imunizações, mas depois eu não sei o que aconteceu…
Mas, apesar das dificuldades, o dinheiro continua vindo, mas o sistema só piora…
Na verdade, o SUS ainda financia muita coisa. O Ministério da Saúde sempre financiou os projetos, a atenção básica, que vai direto par os municípios. A gente tem o nosso teto para cirurgias eletivas, mas há um gargalo, um abismo, que é justamente, e a gente pena com isso, o financiamento da especialidade. Como é isso? Os municípios, mesmo com todas as dificuldades, têm o financiamento voltado para a atenção básica. A gente tem financiamento também, para TFD (Tratamento Fora de Domicílio). Mas eu pergunto, e as consultas? Há um vácuo…
O SUS não paga por consulta? Quanto é o valor de uma consulta paga pelo SUS?
Paga, sim. É RS 10,00.
Dez reais por consulta?
Não é por produtividade. A gente recebe e paga o servidor. Se paga a consulta ambulatorial. Hoje o subfinanciamento está batendo neste probleminha em que você sai do Posto de Saúde e precisa da consulta de um cardiologista. Se você precisa de atendimento numa UPA, você faz o atendimento lá e volta para sua casa. Se você precisa de uma cirurgia de apendicite ou quebra uma perna, você vai para a em nível de ambulatorial. Isso é um problema que não é só do Acre, é em nível de Brasil. É nisso que a gente está batendo.
Então a senhora acha que o SUS precisa ser reestudado, ser reestruturado?
“Não, eu não disse isso. O SUS é maravilhoso. O Sistema Único de Saúde e um tesouro que nós temos.”
Dizem que é único no mundo, é isso?
Não, há em várias partes do mundo. A Europa, por exemplo, tem. O financiamento e os investimentos deles são muito maiores que o nosso. O que eu digo é que o SUS é tipo uma receita de bolo. O Ministério da Saúde doa os ingredientes, o forno e a forma, mas se você não souber bater a massa não vai sair o bolo.
É por isso então que a senhora diz que o problema do Acre era gestão? E o que a senhora está fazendo para melhorar esta gestão?
Estou fazendo o seguinte: quando eu cheguei aqui, a primeira coisa que me falaram foi que se eu resolvesse o problema do Pronto Socorro e fizer andar com as cirurgias da Fundação Hospitalar, resolveria o problema de saúde do Acre. E eu falei: nossa, que simples. Essa é a visão das pessoas é muito curativa. A saúde não é só a falta de doenças. A saúde começa a ser feita lá na casa das pessoas. Essa saúde feita na casa das pessoas, pelo agente comunitário de saúde, pelo posto perto da casa das pessoas, esse sistema está muito debilitado. Muito falho. Com isso cria-se um fluxo e uma cultura de essas pessoas não serem abordadas preventivamente na atenção básica. A pessoa deixa de procurar o posto perto de sua casa. E que ocorre quando isso acontece? A pessoa descontrola o diabetes, a pressão, deixa de vacinar crianças, não toma cuidado com a saúde do idoso para evitar quedas, a pessoa não se alimenta bem e não faz, por exemplo, um mínimo de ginástica, por aí. O que acontece? Quando a coisa já está explodindo, para onde esse povo vai? Para o Pronto Socorro!
Mas, ao que tudo indica, o grande problema do usuário é exatamente este: ele vai ao Pronto Socorro porque não encontra médico no Posto de Saúde perto de sua casa. Como resolver isso?
Ele encontra médico no Posto de Saúde. Hoje ele encontra. E também encontra no Pronto Socorro. Só que agora o Pronto Socorro está funcionando como Pronto Socorro. O que a gente fez? Organizamos o Pronto Socorro e faz 15 dias em que realmente, dentro da nossa estratégia, começou a funcionar, que é fazer um fluxograma e entender que aquele paciente que entrou no Pronto Socorro, ele possa ser atendido de forma que possa ficar o mínimo de tempo ali dentro.
Qual é tempo ideal? Tem um limite?
Tem. Entre 6 a no máximo 12 horas. No máximo de um dia para o outro. O problema daquele paciente tem que ser resolvido neste tempo. É o caso da fratura, da facada, do tiro, do atropelamento, infarto… No máximo caso de intoxicação por metal que a UPA não diagnosticou. Esse paciente fica um pouco lá no Pronto Socorro, vai para a enfermaria e de lá vai para a Fundação. O que não pode é o paciente que deveria ir primeiro para um posto, pular o posto, pular a PA, o ambulatório e ir parar no Pronto Socorro. O que a gente fez para evitar isso? A gente fechou entre aspas o Pronto Socorro como ambulatório total. Quem vai lá agora é porque realmente é um caso de emergência. Se na classificação de risco daquele caso não for de emergência, a pessoa vai ser orientada para onde ela deve voltar. Nesse esquema do SUS, não entra na cabeça das pessoas que isso não é uma coisa hierárquica Isso não e linear. É poliarquico.
O que significa isso, desculpe-me a ignorância?
Significa que ninguém está acima de ninguém. Que tudo faz parte de uma rede. Por exemplo: um paciente está em casa e sente que não está bem, vai ao posto. Mede a pressão, se for o caso, recebe o tratamento e volta para casa. Aconteceu um acidente e machucou o braço em casa? Você vai a UPA e faz uma sutura, recebe o medicamento e volta para casa. Mas, quando você vai numa consulta com o cardiologista e este diz que é necessário se fazer um procedimento cardiológico, você vai para a Fundação, fica internado, vai para uma UTI, para onde precisar. Se precisar de uma avaliação daqui a 30 dias, você volta para a Fundação…
“Acho o povo acreano acolhedor, hospitaleiro, gente humilde e do bem com quem aprendi a conviver.”
Mas isso para quem mora na Capital. E quem mora no interior?
80 por cento da demanda de pacientes é no Posto de saúde. É por isso que é preciso que a atenção básica funcione 80 por cento. O município é o dono do paciente. Não há um paciente de nível de Estado.
Mas, aí o paciente tem uma doença grave e o município muitas vezes não tem médico nem equipamento, como faz?
Se este paciente for muito bem orientado pelo município com vacinação, com pré-natal e em relação às doenças crônicas, dentro da prevenção, que se for coordenado, essas pessoas não vão precisar da média e alta complexidade. O Posto de Saúde tem que dar conta dos seus 80 por cento. Numa coisa maior, o município recorre à regionalização. Não é preciso que esse paciente do município cruze o Estado para vir à Capital em busca de tratamento. É por isso que estamos repactuando a regionalização e a restruturação de hospitais regionais no interior, para atender os municípios do entorno. Vamos ter seis unidades sanitárias no interior que vão fazer o papel daqueles 20 por cento que não puderam ser abraçados pelos postos de saúde dos municípios.
Então a ideia é evitar que o paciente do interior chegue a Rio Branco?
Se for necessário, sim. Mas, por quê? Por que Rio Branco é ruim? Não é por nada disso. É que quanto maior for a distância mais desconfortável é para o paciente, que quer ser tratado perto dos seus, da família. Isso é bom até para o bem estar do paciente. A ideia é fazer um consórcio com o CNPJ desses hospitais para comprar remédios, equipamentos e material mais barato e não precisar depender de Rio Branco, tentando absorver o paciente o máximo ali na regional para que ele não venha para Rio Branco, porque isso, como já disse, é incômodo para o próprio paciente.
Então a ideia é acabar de vez com o TFD?
“Não há como acabar com o TFD. Há casos em que o paciente obrigatoriamente tem que vir para Rio Branco e há também casos em que ele tem que ir para fora. A ideia é diminuir, é acabar com as despesas de TFD desnecessárias.”
Com qual Orçamento a senhora trabalha e vai trabalhar? Já sabe quanto o Estado vai investir em saúde per capta, por pessoa no Estado?
No Ministério da Saúde, para nós, da região Norte, o investimento é de R$ 7,00 por pessoa. Isso porque somos considerados estado pobre. O investimento de São Paulo por pessoa é de menos de R$ 3,00, mês. Mas sobre o orçamento do Estado para a saúde, na resposta que vou dar agora, seria diferente de uma resposta que eu daria sobre o mesmo tema em 2020. Por que isso? Porque neste ano estamos trabalhando com um orçamento que não é nosso e que foi feito por pessoas que nos deixaram com muitos restos a pagar. A gente está trabalhando com um orçamento que foi aprovado no ano passado.
E essa historia de terceirização ou até de privatização da saúde? Há informações de que a vinda dos senhores, da senhora e dos coronéis, para a Secretaria de Saúde obedeceria esta estratégia? O que há de verdade nisso?
Privatização, de forma alguma. O que é privatização para o senhor?
O que os sindicalistas dizem que é o que os senhores estão aqui para fazer. Ou é privatização ou é terceirização?
Eu não sei exatamente o que é dito. O que posso explicar é o seguinte: eu tenho um lote de terra e quero construir uma casa. Ai eu chego para o senhor e digo: olha, daqui há dois anos eu quero a casa pronta e vou embora. Não quero saber onde o senhor vai comprar os materiais nem quanto custarão. O que quero é a casa pronta. Isso é terceirizar. Isso é o que a gente pensa e vai fazer se for preciso, até pensando em absorver o Pró-Saúde, que o pessoal fala em criação de Instituto. Que seja então um Instituto. Vou voltar com o exemplo da casa: o Instituto é o caso em que quero que o senhor me faça a casa, ai eu lhe entrego todos os materiais, os pedreiros e os serviços e digo: todo mês o senhor será pago mediante a medição de tudo o que o que o senhor está fazendo na obra, que tem minha supervisão direta. Este é o Instituto, que não está terceirizando o sistema. Inclusive os institutos são privados, sem fins lucrativos e quem são os integrantes são membros da sociedade civil, dos sindicatos, das Assembleia Legislativa, e quem preside o Instituto é o Estado, no caso o secretario de saúde. É nisso que ainda estamos pensando.
Já que a senhora e seus assessores estão tão bem intencionados, por que recebem tantas críticas?
Sinceramente, eu não sei. Acho o povo acreano acolhedor, hospitaleiro, gente humilde e do bem com quem aprendi a conviver. Reclamam porque não saio, não tenho vida social, não me veem por aí. Sabe por quê? Porque esta mulher aqui estuda e trabalha demais; porque esta mulher está aqui cuidando do sistema de saúde dos acreanos e de quatro filhos, sozinha, já que meu marido ficou em Brasília e quando posso eu viajo para lá ao menos para vê-lo. Então é isso. Você acha que eu faria tamanho sacrifício se achasse que os acreanos não são dignos disso? Eu só quero poder ajudar.