Todo mundo tem uma história que marcou a adolescência, seja uma prova na escola, uma paixão platônica ou aquele show em que cantou até perder a voz. Eu também coleciono memórias, mas algumas simplesmente desapareceram. Explico: meu nome é Verônica Hipólito, nasci em São Bernardo do Campo (SP), tenho 23 anos e, aos 14, depois de operar um tumor na cabeça, tive um AVC que me fez esquecer muita coisa. Ainda assim, lembro que minha infância foi marcada pelo esporte. Meus pais, ambos professores de História, me incentivaram desde muito nova e, com 5 anos, comecei a praticar de tudo um pouco: ginástica olímpica, natação, futebol, futsal, tênis… Acabei me encontrando no judô, que amava!
Cheguei a participar de algumas competições antes de descobrir o tumor, aos 13. Quando acordei da cirurgia para retirá-lo, o médico disse que não poderia mais sofrer impacto acima do quadril. Isso queria dizer que esportes de luta estavam banidos da minha vida. Fiquei triste, mas não desanimei e logo descobri na corrida uma nova paixão. Botei na cabeça que seria a menina mais rápida da cidade. Dito e feito. Procurei uma equipe amadora de atletismo e já me preparava para entrar na de alto rendimento quando veio o segundo baque: um AVC.
O lado direito do meu corpo paralisou e muita gente disse que eu não conseguiria nem voltar a andar, imagine então correr!? Fui contra a previsão. Dei o meu melhor – e dar o melhor dói, cansa e faz a gente querer desistir, mas leva a caminhos especiais. E foi exatamente assim que voltei a falar, depois mexi meu braço, dei os primeiros passos e, contrariando as estatísticas, em oito meses estava correndo. Foi quando meu treinador disse que poderia me encaixar na equipe Paralímpica na classe 30, que é para quem tem paralisia cerebral e AVC. Pensei: por que não?
No topo do pódio
Na minha primeira competição, ganhei medalhas de ouro nos 100 m e 200 m e no salto à distância. Na segunda, bati o recorde sul-americano. Na terceira, bati o recorde das Américas. Na quarta, me tornei campeã mundial. E todas as portas se abriram. Me chamavam de garota-prodígio e consegui patrocínio. No ano seguinte, 2014, ganhei tudo o que você pode imaginar.
Em 2015, tinha Parapanamericano em Toronto e Campeonato Mundial em Doha. Eu estava animada, mas estranhamente comecei a me sentir fraca. Os médicos desconfiaram que estava perdendo sangue e, por precaução, decidiram fazer o exame no intestino grosso, que é uma das regiões mais perigosas para câncer, e descobriram não um nem dois nem três, mas 200 tumores. Quando me disseram que teriam que tirar quase todo meu intestino grosso, meu maior medo era não conseguir voltar a correr. Essa era a minha prioridade. Tanto que decidi competir mesmo assim e operar só dois dias depois.
Não contei para quase ninguém sobre minha saúde, não queria ser vista como coitadinha. E tomei a decisão certa: deu pódio. Voltei com três ouros e uma prata. Mas aí encarei a disputa mais difícil da minha vida, a cirurgia. Nesse momento, desistir passou pela minha cabeça, sim. A recuperação foi difícil, perdi 10 kg e chorava muito. Tive que abrir mão do campeonato mundial e respeitar o tempo do meu corpo. Dessa vez, no retorno, busquei ajuda no Centro de Treinamento da Seleção Brasileira, em SP, que tem boa estrutura. Evoluí. Sabe a história de fazer do limão uma limonada? É meu lema. Nessa vibe, em 2016, na Paralimpíada do Rio, fui prata nos 100 m rasos.
Montanha-russa
Mas a vida é imprevisível, né? Naquele mesmo ano, o tumor na cabeça reapareceu e operei. De novo. Em 2018, ele voltou ainda maior e tirei boa parte da minha hipófise, o que me fez parar de produzir hormônio masculino e feminino. Fiquei debilitada, me tornei dependente e precisei tomar cortisol, o que me fez ir de 45 kg para 67 kg. Nessa época, rolavam várias piadas, principalmente nas redes sociais, de que eu era gorda para ser atleta. Por um tempo, me escondi, mas depois decidi mostrar como nossa sociedade é preconceituosa, machista e gordofóbica. Entendi o valor do meu lugar de fala.
De passinho em passinho, melhorei e voltei a correr. Em 2019, fui para o Parapanamericano e ganhei duas medalhas de prata, que têm gostinho de ouro para mim. Todo dia, vivo na intensidade de descobrir meu novo corpo, mas também na missão de incentivar minorias. Sabe por quê? No início de 2018, não sabia se estaria viva. No fim do mesmo ano, questionei se voltaria a correr. No início de 2019, duvidei que chegaria ao Parapan. E agora estou aqui, ansiosa para as Paralimpíadas em Tóquio. Não deixo minhas batalhas me limitarem. Todo mundo tem problema, mas também tem a solução. Por isso, se eu pudesse dar um conselho, seria esse: não desista por causa das barreiras no caminho e seja gentil consigo mesma. Vai por mim, esse pensamento é poderoso para quem quer chegar longe. Sou prova viva disso!