“Eu retornei do inferno”, diz ex-usuária de cocaína que hoje é servidora do MPAC

Ela já nasceu, em 1975, pesando cinco quilos – quando o peso médio e normal de um recém-nascido, de idade gestacional normal, varia entre 2.500g e os 3.800g. Alerta a medicina pediátrica que crianças nascidas com um peso alto, maior que 3.800g, têm mais riscos de hipoglicemias, sendo necessário o controle dos níveis de açúcar no sangue já nas primeiras horas de vida, porque o peso elevado do bebê pode se relacionar às alterações do metabolismo da mãe, como o diabetes descontrolado.

No caso de Patrícia da Silva Neves, aquela criança nascida com peso acima da média há 44 anos, em Rio Branco (AC), os problemas de saúde seriam bem mais graves. Eram de ordem psíquica. Mesmo integrante de uma tradicional família acreana, criada cercada de carinho e atenção, aos 15 anos de idade, ela manteve contato com as drogas, inicialmente com maconha, viciou-se em cocaína por quase 25 anos, teve três filhos e mais tarde viveu e mendigou nas ruas para poder comprar crack e sustentar o vício. Mesmo drogada, seguiu a tendência do nascimento e chegou a pesar 170 quilos, depois de enfrentar a cadeia numa penitenciária local. Mas acaba de retornar do inferno, ela diz.

Patrícia nos tempos em que vivia nas ruas/Foto: Arquivo Pessoal

Sóbria faz cinco anos, hoje Patrícia é uma peça importante numa autêntica engrenagem jurídica do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) no trabalho de resgate de pessoas com histórico igual ou pior – se é que é possível – que o dela no envolvimento com drogas e álcool. Uma engrenagem que, ao invés de moer, é azeitada para salvar e recuperar vidas. A engrenagem utilizada pela instituição para retirar pessoas das ruas e do drama do uso exagerado de álcool e da drogatização atende pela sigla Natera – Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial, criado em 2013 como órgão auxiliar do Ministério Público do Acre (MPAC), coordenado pela procuradora de Justiça Patrícia do Amorim Rego, e que, de 2013 a 2018, atendeu 2.868 pessoas – considerando que, para cada paciente atendido, o número é multiplicado por quatro pessoas se se considerar a proporção média de pessoas envolvidas em cada caso – pais, irmãos ou companheiros (as).

“A cada ano é crescente o número de pessoas atendidas”, disse o coordenador do Natera, Fábio Fabrício Pereira da Silva. Tanto ele como Patrícia Rego, a coordenadora do programa tantas vezes premiado em nível local e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), são só elogios ao trabalho de Patrícia Neves desde que ela chegou à instituição e passou a utilizar a sua dolorosa experiência pessoal para trazer ao Ministério Público pessoas que, nos primeiros contatos, veem a instituição como um órgão repressor, igual ou pior que a policia, e do qual, por isso mesmo, procuram manter uma distância segura.

Acompanhada de outros técnicos do MPAC, Patrícia tem voltado aos locais por onde passou ou viveu, como o bairro do Papoco, antiga zona de baixo meretrício da cidade que recebeu o nome do falecido bispo da Diocese de Rio Branco, Dom Giocondo, e alguns investimentos públicos na tentativa de mudanças, mas continua um valhacouto onde vive um grande número de viciados, os chamados “noiados” e, não raro, diversos tipos de criminosos. Ali é ponto de uso e de tráfico de drogas. Patrícia Neves foi parar lá depois de uma das muitas brigas que teve com a família, após mais uma vez fugir ou brigar – às vezes até fisicamente – com monitores das casas de recuperação por onde passou como interna para, enfim, poder voltar às ruas. “Meu pai um dia me condicionou que tinha que me tratar e eu disse que não iria para casa terapêutica nenhuma e que queria ir para o Papoco. Ele disse: bem, se é isso que você quer, eu a levo. E me deixou na entrada do bairro”, contou Patrícia, que conheceu o bairro assim que conheceu o crack.

Patrícia Neves já recebeu prêmios pela iniciativa do Natera /Foto: Arquivo Pessoal

De Goiânia para o Papoco em Rio Branco, apresentada ao crack

Antes de ir parar no Papoco, após cumprir três anos de prisão na penitenciária estadual por tráfico de drogas, ela esteve em casas de recuperação de Rio Branco, do Rio de Janeiro, do interior de Minas Gerais e teve inda uma passagem por Goiânia (GO), nas muitas vezes em que sua família interviu na tentativa de ajudá-la a se livrar dos vícios.

Ali em Goiânia, ela deveria estudar, fazer um curso de radiologia, um dos três cursos superiores que a menina de boa família, que sempre estudou em colégio particulares, nunca conseguiu concluir, por causa do vício. No começo as coisas até iam bem. Ela morava num flat montado por seus pais, todo mobiliado e organizado e morava perto da faculdade, para onde ia até andando, se quisesse. Mas um dia, por ironia, conheceu lá em Goiânia, coincidência ou não, um certo Marcelo, cidadão acreano, de Plácido de Castro, que a apresentou ao crack, cujo nome, do inglês, faz referência à onomatopeia da droga sendo aquecida em chamas, com o uso de uma colher sobre o fogo, com estalos e ruídos secos, que lembram pequenas explosões. É a cocaína solidificada em cristais. Tecnicamente, resulta da conversão do cloridrato de cocaína e que contém entre 5% a 40% da droga misturada a bicarbonato de sódio e água. É a forma de cocaína mais viciante e também a segunda droga mais viciante do mundo, perdendo apenas para a heroína. As pedras de crack oferecem uma curta mas intensa euforia aos usuários. Apareceu inicialmente nos Estados Unidos, em bairros pobres do centro das cidades de New York, Los Angeles e Miami, entre os anos 1984 e 1985. No Brasil, o crack passou a ser conhecido nos anos de 1990, inicialmente nos grandes centros e se expandiu para o interior e hoje é produto abundante no Acre, um dos estados brasileiros com a maior faixa de fronteira com a Bolívia e o Peru, países apontados como os maiores produtores de entorpecentes do mundo. Uma fronteira praticamente desguarnecida e, portanto, território livre para traficantes.

Para o consumo inalatório da droga, são utilizados cachimbos elaborados pelos próprios usuários, geralmente de alumínio e compartilhados entre o grupo de uso. Também tem sido corriqueiro consumo de cigarros comuns ou de maconha com fragmentos de pedras de crack. Os usuários relatam que os efeitos iniciais são mais rápidos e intensos do que os de outras drogas, inclusive injetáveis. A duração dos efeitos do crack é muito curta, em média cinco minutos, enquanto a cocaína, depois de injetada ou usada por via intranasal, provoca efeitos com duração em torno de 20 a 45 minutos.

A acreana viciada em cocaína, uma vez apresentada à droga muito mais poderosa, não resistiu. Os móveis do flat montado por seus pais em Goiânia viraram literalmente fumaça, tudo vendido para sustentar o vício em crak. Se a cocaína em sua vida havia sido uma espécie de amor à primeira vista quando ela tinha 15 anos e foi por conta própria adquirir o produto numa “boca” do bairro São Francisco em Rio Branco, a sensação do crack, segundo ela, foi algo quase indescritível. “Algo melhor que um orgasmo, só que mais duradouro”, definiu.

Era um ápice de uma história iniciada ainda na adolescência, por mera curiosidade. Patrícia se relacionava com diversos amigos e amigas que usavam maconha. Um dia a ofereceram. Ela aceitou. Fumou e, ao contrario de Bill Clinton, o ex-presidente dos Estados Unidos que disse ter fumado mas não tragado, ela tragou – mas não gostou! “Vomitei até a alma e decidi que não queria mais. Mas fiquei com a curiosidade da cocaína porque ouvi de alguns amigos meus que a droga era o maior barato. Experimentei e senti que aquilo era muito bom. Foi amor à primeira vista”, disse.

De usuária a traficante e do tráfico para uma cela na penitenciária

A maconha foi então deixada de lado e a cocaína passou ser usada cotidianamente, primeiro aos finais de semana. Depois, diariamente, em quantidades sempre crescentes. Mas ela ainda vivia dentro de casa e até tentava levar uma vida normal, estudando, ajudando a mãe nos afazeres domésticos, ajudando no cuidado com os filhos, nascidos logo após um ao outro, de pais diferentes, homens que ela conheceu no uso. Mas, na faculdade, quando ela tentava estudar, o que era um vício, virou comércio. “Logo após terminar o ensino médio, eu fui para a Universidade. Mas, como haviam muitos amigos meus que eram parceiros de uso de cocaína, acabei me envolvendo com eles de novo”, conta.

Parícia atua levando para o Natera pessoas em situação de rua, como ela já viveu um dia /Foto: Arquivo Pessoal

Daí para o tráfico, foi um pulo. Os traficantes perceberam que aquela mocinha gordinha de rosto de traços delicados e de boa família não era uma pessoa qualquer. “Eu era bem relacionada e acho que isso chamou a atenção deles. Passei a vender drogas para sustentar meu vício e daí não deu mais para estudar. Eu até ia para a faculdade, focava nos estudos, mas no meio da aula, um cliente me chamava, e eu ia atender. Mal voltava para a sala de aula, e outro chamava. Do meio para o fim, eu só ia para a faculdade para vender”, revelou.

Mas, eis que um dia, para usar um neologismo do tráfico ou até mesmo da polícia para definir o fim de um esquema de venda de drogas, com a prisão dos envolvidos, a casa caiu. Era uma operação da Polícia Federal coordenada a partir da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, na qual foram presas 25 pessoas de todo país, algumas do Acre, entre elas Patrícia Neves. Começava aí uma longa temporada na cadeia.

Patrícia Neves, no entanto, otimista por natureza, nunca imaginou que isso pudesse acontecer. Quando a Polícia Federal a colocou sob seu radar de investigações, ela já não morava em casa dos pais e na companhia dos filhos. Vivia num apartamento alugado no bairro Vila Betel, enquanto seus filhos viviam aos cuidados da avó. Mas a Polícia Federal não sabia disso e foi bater às portas da família, no bairro do Bosque. “Minha mãe me avisou: – olha, a Polícia Federal está aqui atrás de você. Acho bom você se entregar. Do contrário você pode morrer”, disse-lhe a mãe, preocupada.

Patrícia chegou à sede da Polícia Federal com uma mochila carregando no máximo duas mudas de roupa, porque achava que ficaria pouco tempo na cadeia. “Eu tinha essa confiança porque, apesar de negociar a droga, eu jamais carreguei ou transportei a droga. Nunca viajei carregando droga, meus contatos eram só por telefone e por isso achava que a PF nada tinha contra minha pessoa”, disse. “Só que não sabia que a Polícia Federal monitorava meus telefones fazia pelo menos quatro anos. Depois eu soube que os telefones novos que eu comprava, já saiam das operadoras grampeados. Não sei como faziam isso, mas faziam. Sabiam de tudo”, contou.

Na cadeia em Rio Branco, depois de ter sido julgada em Natal e separada das demais presas por ter sido considerada pela juíza do caso como de “alta periculosidade”, ela ficou presa na enfermaria do presídio. E, de vez em quando, conseguia alguma droga para consumir lá mesmo na prisão, “só que mais cara e sem qualidade”.

Depois de três anos presa, Patrícia conseguiu o regime semiaberto, voltou para casa mas acabaria sendo recolhida ao presídio outras vezes porque, como havia voltado a usar droga de forma cotidiana, acabava esquecendo-se de se dirigir à vara das execuções penais e assinar papéis informando à Justiça de suas atividades, uma das exigências para o cumprimento deste tipo de pena. E continuava engordando.

Procuradora de Justiça, Patrícia Rego, coordenada o serviço de atendimento do Natera/Foto: Ascom MPAC

Num dia de alguma sobriedade, em casa, descobriu que sua filha do meio, ainda menor de idade, estava grávida. As duas travaram um diálogo em que a jovem disse que Patrícia não iria conhecer o futuro neto. “Ela me disse: mãe, você conhece alguém com 70 anos que pese 170 quilos? Não existem pessoas assim, porque elas morrem. Você vai morrer sem conhecer seu neto”, disse a jovem Giovana, dilacerando o coração da mãe viciada. “E se sobreviver, não vai conhecer também porque eu não vou deixar meu filho ter contato com uma avó noiada (drogada)”, disse a jovem.

De algum jeito, aquelas palavras tocaram fundo no coração de Patrícia. Ela decidiu ali mesmo fazer a operação de redução de estômago e, para isso, teve que passar um mês sem uso de drogas em preparação para a cirurgia. “Ali eu percebi que era possível parar e decidi não usar mais drogas”, contou.

Magra, agora com 57 quilos, Patrícia queria viver e conhecer o neto, como de fato conheceu. A criança tem cinco anos, o tempo em que ela está sóbria. Mas, sem o uso de drogas, Patrícia agora enfrentava outro drama comum a muitos brasileiros: a falta de emprego.

Seu encontro como Natera e com o MPAC deu-se quando ela, já sóbria, lembrou-se de uma técnica que a visitara numa casa de recuperação e lhe passara seus contatos, pedindo que Patrícia, se precisasse, a procurasse na sede do órgão. “Eu vim, me apresentei e ficaram de me chamar. Um dia me chamaram e estou aqui, ajudando como posso”, conta, certa de que sua experiência e convivência com algumas daquelas pessoas na época em que ela também vivia nas ruas a ajudam na abordagem.

Uma tábua de salvação chamada Natera

Afinal, Patrícia Neves sabe bem o que é viver nas ruas. Quem vive sem um teto, sofre com a falta e a violência, falta de alimentação, precariedade e o abandono. Vida que não é vida. E, no entanto, essas pessoas precisam de atenção e poucos são os casos em que o poder público se evolve diretamente na questão. A exceção é o MPAC, através do Natera, que busca garantir a esse público direitos sociais, de saúde, educação, cultura, emprego e renda, além de direito à segurança e acesso à justiça. “É uma tarefa difícil, mas aos poucos a gente vai conseguindo. Muito disso graças ao trabalho da Patrícia”, disse a procuradora Patrícia Rego.

Fabio Fabrício é o coordenador do Natera e é todo elogio em relação à colega Patrícia Neves/Foto: Arquivo Pessoal

Afinal, Patrícia, a Neves, conhece quem vive nas ruas pelo nome e sabe exatamente a quantidade de pessoas neste universo de abandono em Rio Branco. São cerca de 250 pessoas vivendo nas ruas, a maioria no centro da cidade, a grande maioria composta de homens. “Mas vem crescendo muito nos últimos tempos o número de mulheres em situação de rua”, disse. Entre o grupo, há pelo menos quatro menores, dois meninos e duas meninas, que vivem nas ruas na Capital acreana.

Trazer essas pessoas para serem atendidas é difícil dado à situação mental, a desconfiança e o histórico de sofrimento de muitas dessas pessoas nas mãos do setor repressivo da sociedade, a polícia. “Muitos ainda nos veem como policiais. Quando eu vou numa abordagem, quando eles me veem e me reconhecem, se sentem mais seguros. Alguns até vêm e aceitam o atendimento”, conta ela.

O trabalho do Natera consiste em acolhida, escuta técnica, consulta processual, além de triagem da demanda. Os atendimento são internos, na sede do Natera ou domiciliares. O órgão auxiliar do MPAC também atua com atividades educativas, palestras, conferências , seminários e audiências públicas. Em todas essas atividades, Patrícia Neves, agora estudante de Direito, é uma palestrante sempre com muita audiência. Afinal, ela é um exemplo vivo de que uma instituição como o Natera, que atua também como órgão defensor dos direitos humanos, pode ajudar muito na missão de salvar vidas e recuperar pessoas que elas próprias deixaram de acreditar que é possível viver sem drogas e de forma digna.

Bem vinda de volta, Patrícia.

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