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Jovem transgênero sonha em jogar entre os profissionais de time masculino

Por GLOBO ESPORTE

Na carteira de identidade, meu nome é Marcela Nascimento Leandro. Eu jogo futebol. Tenho três títulos mundiais com a seleção brasileira feminina de futsal. Tenho um título brasileiro com o Corinthians no futebol de campo. Mas quando me olho no espelho, eu não vejo essa jogadora de sucesso. Quando me olho no espelho, é o Marcelo que eu vejo.
Porque eu, Marcelo, sou transgênero. E quero continuar jogando futebol. Mas com os homens.
É um pouco difícil, eu sei. Uns me chamam de Marcela, outros de Marcelo, e eu mesmo fico confuso com minha história, apesar de não ter dúvida nenhuma sobre quem eu sou: um homem que deseja se consagrar no futebol. E que, até agora, viveu escondido no corpo de uma mulher.
té dezembro passado, meus amigos me chamavam de Marcelinha. Peço desculpas se parece que enganei alguém. É que isso ficou sufocado dentro de mim durante 31 anos: eu não sou Marcela; eu nunca fui Marcela.

Isso não significa que eu não valorize tudo que vivi no futebol feminino. Sei que devo muito a ele. Vivi dele por 16 anos, mesmo me sentindo um estranho no vestiário. Tive sucesso, tive títulos. Mas não era feliz – e essa infelicidade, você logo vai saber, quase virou minha ruína, quase tirou minha vida.
A única coisa que me mantinha bem era saber que eu iria jogar. Essa relação com o futebol começou cedo, porque dentro de casa eu tinha um jogador profissional: meu pai, seu Juarez Leandro, ponta-esquerda dos bons. Ele rodou por Minas Gerais e por alguns clubes menores de São Paulo. Se não fosse pela bebida e pelo abuso de drogas, talvez tivesse ido longe. Mas Seu Juarez não tinha cabeça (e nem 20 anos de idade) quando se desiludiu.

Foi tudo consequência de uma negociação que não deu certo. Minha avó assinou um documento que garantia o passe dele ao Democrata de Sete Lagoas, que passou a ter o poder de decidir seu futuro. Na temporada de 1983, meu pai achava que estava pronto para atuar em times melhores. O Democrata pensou diferente e não o liberou para a base do Guarani de Campinas. Isso tirou meu pai da linha para sempre. As coisas nunca mais foram tranquilas para a nossa família, a ponto de um dia, enlouquecido pelo álcool, ele atear fogo na nossa própria casa, com a minha mãe, dona Maria Eufrázia, dentro do quarto.

Eu já havia perdido as contas de quantas vezes ele a tinha agredido. É uma das últimas coisas de que me lembro antes de os dois decidirem se separar. Um incêndio, diversas mudanças, móveis e almas quebrHoje eu consigo entender que meu pai tinha muitos problemas. Mas eu só enxergava o ídolo, o cara que vivia para jogar bola, que fazia o que eu queria ser quando crescesse. Sempre que era possível, e ele não estava bêbado demais, eu o acompanhava nos jogos, e a gente entrava em campo de mãos dadas. Aquilo era incrível. E isso que já nem era futebol profissional. Depois que nasci, meu pai já jogava apenas em times amadores.

O legal dessa época é que o meu bairro em Sete Lagoas, no interior de Minas Gerais, era lotado de garotos que não se importavam em jogar comigo. Eu, com sete anos, tinha o respeito deles. Ninguém ligava que eu era uma menina, até porque naquela idade a diferença de força não era tão grande assim. Enquanto os meninos me idolatravam, as meninas inventavam apelidos para mim. Joãozinho, Maria Homem e tantos outros que nem consigo lembrar. Elas pensavam que me ofendiam, mas na verdade eu adorava aquilo.
Na escola, eu também era rei. Jogava no time principal e ganhava até bolsa de estudo por isso. Eu era tão bom que nunca fazia aula de educação física com as meninas. Jogava futsal e futebol. Na quadra, eu era ala. No campo, meia-atacante.

Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai me levou para treinar com meu irmão Lucas na escolinha de futebol masculino do Clube Esportivo Ideal, já que em Sete Lagoas não tinha time feminino. Após alguns meses, disputei o primeiro amistoso. Foi incrível. Eu conseguia acompanhar os meninos, era possível jogar de igual para igual. Eu me sentia um deles! Falava como eles. Mandava até os mesmos correios elegantes para as garotas populares da escola.

O problema era minha aparência. Eu me olhava no espelho e não via a imagem que tinha na minha cabeça. Era obrigado a usar vestidos, saias, pentear o cabelo. Teve uma vez que minha mãe me levou para tirar a primeira foto 3×4. Para me deixar arrumadinho, colocou em mim uma saia azul-turquesa e uma blusa branca, com uma fitinha. Eu sei que ela comprou com carinho, mas chorei muito por isso. Na minha cabeça, era um insulto tirar a foto do meu primeiro documento vestido daquele jeito.
Aquele foi um de muitos episódios de crise. E sempre pelo mesmo motivo: a obrigação de ser e parecer uma menina. Era o gosto da minha mãe, o gosto de qualquer mãe – ver a filha com roupas femininas, cabelo arrumado. Eu pensava que havia algo errado comigo. Me sentia diferente por gostar das coisas que os meninos faziam. Na época, como poderia entender essas questões de gênero? Para mim, era algo muito simples: eu queria ser menino, eu era um menino! Mas então por que todos me diziam o contrário?

Você consegue imaginar? Eu era um menino que tentava entender por que havia nascido em um corpo de menina, com nome de menina. Era um sofrimento gigante e solitário. Parecia que eu era doente da cabeça.
Mas pelo menos tinha o futebol. Nas minhas cartas para o Papai Noel, eu sempre pedia uma bola de futebol. Sorte a minha que o avô de um dos meus meio-irmãos só comprava isso para todas as crianças. Ele tinha uma condição financeira razoável e um bom gosto danado para presentes. Era o que me salvava. Todo ano eu ganhava bola, chuteira e o uniforme do Atlético-MG, meu time do coração.

O problema é que esse avô, que não era avô de verdade, cometeu uma série de abusos sexuais na minha infância. Por trás de cada bola, cada chuteira, cada presente, havia uma cobrança perversa. Não sei dizer quantas vezes esse senhor pulou na minha cama durante a noite, esfregou seu pênis em mim e me obrigou a acariciá-lo. Não sei quanto tempo isso durou, mas certamente foi tempo demais. Eu era apenas uma criança…

E antes que você tire conclusões precipitadas ou tente encontrar motivos para eu ser transgênero, saiba que minha orientação sexual ou a forma como me vejo no mundo não tem nada a ver com a violência que enfrentei. Foi só mais um episódio triste dos meus dias de menina.

E o pior é que o futebol, a única coisa que me dava paz, também começava a escorrer pelos meus pés. Embora eu treinasse com os meninos todos os dias, fui proibido de continuar no time masculino. O Clube Náutico não permitiu que eu disputasse um torneio de base, mesmo sendo sócio, e mesmo com toda a equipe me apoiando. Eu era o melhor jogador do time, e nenhum garoto se incomodava com isso. Ainda assim, não poderia mais estar ao lado deles.

Minha mãe tomou como meta encontrar uma equipe para mim – uma equipe de meninas, claro. Não foi tão fácil assim, mas ela estava segura de que era o certo a se fazer. Enquanto isso, eu seguia respirando futebol, jogando em todos os lugares que podia: na escola, na rua, até dentro de casa. Com o calor que fazia no verão de Sete Lagoas, eu nem me preocupava em colocar uma camiseta. Imagina o que senti quando percebi que teria de me cobrir? Pior: que iria usar sutiã…

Ver meu corpo mudando acabava comigo. Com 12 anos, eu tinha seios e precisava escondê-los. O bom dessa fase é que minha mãe cumpriu a palavra e encontrou um time de futsal para mim. Sim, de meninas. E por um período breve da minha vida eu tentei me convencer de que podia ser como elas – afinal, era o que dizia minha certidão de nascimento. Soltei o cabelo, botei saia, usei batom. Beijei meninos. E tinha uma equipe para jogar. Eram adolescentes mais velhas, mas mesmo assim eu passei no teste. Se eu me dava bem entre os meninos, imagina com essas pirralhas?

Deu tão certo que aos 14 anos recebi minha primeira proposta profissional. Saí de casa e fui jogar em Governador Valadares. Deixei para trás todas as questões familiares e fui viver. Prometi para mim mesmo que só voltaria para lá quando fosse campeão mundial com a Seleção.

A distância da família me libertava, e com isso meu futebol só cresceu. Meu caminho a partir dali foi cheio de glórias, incluindo cinco anos na seleção de futsal, três títulos mundiais e o segundo lugar em uma eleição para melhor do planeta. Meu pai chora toda vez que pensa em mim com a camisa amarela da Seleção.

O passo natural era ir para o campo, e a habilidade do futsal me ajudou. Passei por São Paulo, Santos, XV de Piracicaba, Spartak da Sérvia… Até que em 2018 o Corinthians apareceu no meu caminho.
Eu tinha 29 anos. Naquela altura, o que eu queria era visibilidade para chegar à outra seleção brasileira. E não fiz por menos. Virei titular absoluto do Corinthians. Tornei-me a figura colocada lá na frente para fazer gols.

Só que aí, de uma hora para outra, tudo mudou. Comecei a sentir dores. E eram do pior tipo: eram dores invisíveis.
Eu não queria treinar, comer, falar. Travei. Pode chamar de surto, nem sei explicar o que senti, mas não estava bem, tinha pensamentos suicidas, e às vezes o pânico me dava certeza de que eu iria morrer. Em outubro, me entupi de remédios e de álcool. Desapareci. O técnico do Corinthians, Arthur Elias, e minha companheira e amiga de time, Gabi Zanotti, decidiram me internar em um hospital psiquiátrico. Todos temiam pela minha vida.

E aí eu preciso voltar para três anos antes, para 2015. Eu tenho esse ano tatuado na minha mão direita, junto com uma palavra muito importante para minha vida: metamorfose.
Foi em 2015 que descobri a palavra transgênero e enfim entendi o que eu enfrentava. Li casos e casos de pessoas que passaram pelas mesmas situações, que sofreram como eu, e ali, pela primeira vez, não senti solidão. Tentei me segurar no futebol porque era o que sabia fazer, e minha carreira estava indo bem.

Mas o que seria de mim se gritasse para o mundo que eu não sou o que você vê? O que seria de mim se abandonasse o futebol feminino?
Optei por aguentar, e isso teve um preço alto na minha saúde mental. Depois de ser internado, tentei reencontrar um caminho. As dores estavam por toda parte, não me deixavam jogar. Juntei meus cacos, tomei antidepressivos e voltei em novembro para ser campeão brasileiro – com direito a gol na final. Se você olhar para a foto do título, vai ver um sorriso de satisfação. Mas pode acreditar: por dentro, eu estava destruído.

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