ContilNet Notícias

Artistas são respeitados por faccionados em periferia, diz presidente da FEM

Por TIÃO MAIA, PARA O CONTILNET

A partir do momento em que agentes de endemias, membros de conselhos tutelares e funcionários de outros órgãos governamentais que deveriam atuar nos bairros e que passaram a ter dificuldades de relacionamentos com a comunidade em função da firme atuação das facções criminosas, cujos soldados expulsam e não permitem a atuação desses profissionais, outro grupo de pessoas, também composto de funcionários públicos, se não têm a entrada completamente franqueada, são ao menos tolerados pelos criminosos. São grafiteiros, skatistas, dançarinos e outros integrantes do movimento cultural como os praticantes do hip-hop e outros artistas ligados ao teatro.

“A princípio, eles também desconfiam da gente, mas com o tempo a gente vai ganhando confiança e aí eles deixam a gente trabalhar”, disse um desses servidores num relatório que chegou ao conhecimento da Fundação de Cultura “Elias Mansour” (FEM), o órgão estatal encarregado de promover a cultura no Governo do Estado.

Correinha vê o movimento artístico e as atividades culturais como aliados dos organismos de segurança/Foto: ContilNet

A manifestação de que os faccionados toleram os artistas e permitem a atuação deles nos bairros dominados pelo crime, animou o presidente da FEM, o ativista cultural Manoel Pedro Correa, o “Correinha”. Ele enxerga, a partir disso, o movimento artístico e as atividades culturais como aliados dos organismos de segurança do Estado no combate ao crime e está disposto a atuar na área a fim de que os índices de violência no Acre, que vêm caindo graças ao forte trabalho de repressão do sistema de segurança, possam ser ainda mais reduzidos e possam ser devolvidos a números aceitáveis. A ONU (Organização das Nações Unidas) fala em até 20 assassinatos por cada grupo de 100 mil pessoas num período de um ano, enquanto no Acre, no período mais sangrento da guerra entre facções, tais números chegaram até ao triplo do que é convencionado como tolerável pelos grupos internacionais.

Sobre o assunto o ContilNet foi ouvir o presidente Pedro Correia para a entrevista cujos principais trechos são reproduzidos a seguir:

Então o senhor concorda de que, em tempos de violência, em tempos de matanças com os quais o Acre vinha convivendo, principalmente em Rio Branco, o movimento cultural poderia ser um aliado do Governo e do sistema e segurança no combate à violência e ao crime? O senhor concorda que a juventude está mais próxima do crime do que lazer, mais próxima da bandidagem do que da cultura?

Manuel Pedro Correia, o “Correinha” – Concordo e admito que isso seja fato, respondendo às duas perguntas. Há uma frase com a qual eu concordo em absoluto: a cultura transforma. E nós temos exemplos disso bem aqui perto de nós, em países anteriormente tidos como os mais violentos do mundo, como foi o caso da Colômbia. Os colombianos resolveram o problema do narcotráfico e da violência investindo em cultura também. Não foi só repressão. Houve todo um movimento cultural para afastar as pessoas, principalmente os jovens, do mundo do crime.

O senhor acha que a experiência da Colômbia poderia ser aplicada aqui no Acre?

Com certeza. Temos que investir sim e sair do discurso de que a cultura é importante e que é transformadora de realidades negativas sem o devido investimento. Precisamos investir e acreditar mais. As instituições, todos os poderes, precisam fortalecer ainda mais a cultura porque está provado que ela é transformadora. Nós temos jovens talentosos, vocacionados, que poderiam ser grandes artistas, e que estamos aos perdendo para o crime. O fato é que não estamos despertando neles o mesmo interesse que desperta o criminoso e o crime. Nós podemos entrar mais nos bairros com grupos de formação de orientação e de formação.

São grupos de quê? O que é oferecido aos jovens, principalmente nos bairros periféricos onde eles convivem com os criminosos?

Nós temos a capoeira, a música, a dança, a arte plástica, o teatro, artes visuais, cinema – tudo isso nós temos a oferecer. Quando o Estado promove isso, o jovem passa a ter interesse nisso, que será, sempre, uma novidade. Quando o Estado traz este jovem para perto, com certeza ele não vai fazer opção pelo crime. Nem mesmo o pai deste que ele venha a ser criminoso, não quer que o filho siga seus passos. Nem um pai bandido vai querer isso para seu filho. Não há esta lógica perversa.

E como lhe tem chegado informações de que, em bairros dominados pelo crime, os agentes de cultura conseguem entrar?

Recebi a informação de um grafiteiro, que me contou assim: presidente, a gente consegue, sim, entrar nos bairros. Quando a gente entra, fica todo mundo muito assustado, olhando e encarando a gente, mas assim que a gente começa a fazer uma intervenção num muro, numa parede, aí até mesmo aqueles que pareciam assustados começam a se aproximar, a se chegar, a querer saber da técnica aplicada e, quando a gente percebe, eles estão envolvidos com a gente e nós também envolvidos com a comunidade, levando a técnica, levando a arte do grafite e da pintura. Sinceramente, eu não acredito que a gente vá derrubar a violência só através da repressão, da polícia e dos órgãos de segurança. A meu ver, este movimento tem que estar capitaneado, talvez até à frente da repressão, pela cultura e pela educação.

“A cultura transforma. E nós temos exemplos disso bem aqui perto de nós”/Foto: Reprodução

Mas o que está sendo feito para que este seu discurso seja aplicado?

Estamos trabalhando muito, mas temos consciência de que é preciso trabalhar mais, fazer muito mais, investir mais, lançar mais editais.

Quanto o Estado dispõe no Orçamento para a cultura em 2020?

Nosso orçamento para este ano não chega a R$ 5 milhões. E nós administramos 37 espaços. É um orçamento pequeno, mas se conseguirmos injetar a metade disso diretamente na cultura, no Estado inteiro, a gente transforma a realidade.

E por que isso não começa a ser feito?

Estamos, neste momento, num compasso de espera porque também queremos mudar a forma de investimento na área cultural. Penso que eu, como presidente da FEM, não tenho que sair dizendo em Mâncio Lima, em Santa Rosa, Rodrigues Alves ou Jordão o que tem que ser feito. Tenho que ajudá-los, só isso, porque eles têm a cultura lá, como os festivais indígenas e outras atividades e eu não tenho que estar definindo coisas. O que tenho que fazer é estimular, fomentar os interessados em seus municípios. Nossa ideia é lançar editais específicos para cada município. Aqui na Capital ninguém tem a dimensão do que é se jogar R$ 10 mil, R$ 15 mil em atividades culturais num município desses que citei. A gente aqui pensa que é pouco, mas lá para o município, aonde quase nada chega, é muita coisa.

Então, para o senhor, está claro que os grafiteiros têm mais condições de conexão com os bairros e naturalmente com quem mora lá, inclusive bandidos ou membros de facções? O senhor acha que esta é uma saída?

Não só os grafiteiros. Nós temos o hip-jop, o skate e todos os movimentos que despertam interesses, principalmente nos jovens e as pessoas passam a ter atividades e aos poucos saem do mundo do crime. A música é também uma grande aliada, o teatro e a dança também ajudam. A Escola de Música, logo no início do nosso Governo, no ano passado, uma pessoa me procurou e pediu para fazer aulas de dança, cujo movimento começou com 10 pessoas. Hoje, menos de um ano depois, são mais de 200 pessoas envolvidas. Isso é muito gratificante. A gente comemora sair de 10 para 200 como sendo muitos, mas ainda é algo muito pequeno para a grandiosidade do que pode ser feito.

Teoricamente, o que o senhor está dizendo parece perfeito. Mas e a prática como está?

Olha, tudo ainda é novo e está sendo feito. Se a gente tiver esta parceria com os demais órgãos – e quando eu digo que tem caminhar juntos a Fundação com a Secretaria de Segurança Pública, com a área de Bem Estar Social, com a Secretaria de Educação e outros órgãos – a gente alcança os objetivos. Precisamos também de alianças com pessoas e com a iniciativa privada porque não é possível o Governo fazer tudo sozinho. Pessoas, empresas e instituições precisam ter também olhar transformador para a cultura.

Há, no momento, algum trabalho iniciado ou ainda estamos só no campo da utopia?

Eu estou fazendo. De forma ainda muito pequena, paliativa, mas estamos fazendo. Estou dialogando muito com a classe artística, com cada setor e com cada segmento das artes. Agora mesmo fizemos uma exposição com 19 artistas plásticos expondo no salão da FEM e vamos ter oficinas diretas de aquarela, de artes plásticas envolvendo a comunidade do Bairro 6 de Agosto, do Taquari, da Cidade Nova, do XV. Nós entendemos que é necessário nos aproximar e os espaços da cultura têm que estar abertos. Não são espaços do Governo ou da FEM. São da comunidade, da sociedade e cabe a nós, do Governo, criarmos atividades para que sejam ocupados. Estando abertos, terão uso, com certeza.

O senhor falou de 37 espaços culturais sob a responsabilidade da FEM, mas um deles, o mais belo e mais tradicional de Rio Branco, o Teatro Plácido de Castro, está se acabando a olhos vistos. O que está sendo feito para evitar isso? Falta espetáculos e atividades para ocupação desses espaços, é isso que está acontecendo?

Concordo que o Teatro Plácido de Castro precisa de reforma. Isso é fato. Mas já posso anunciar que há recursos para este fim, pelo menos R$ 3 milhões na conta. A gente esperou apenas a virada do ano para não fazer apenas uma reforma paliativa, de maquiagem pintar e entregar à comunidade. Vamos fazer diferente. Temos que fazer uma reforma à altura do nosso Teatrão. Mas se engana quem pensa que o Teatrão está sem atividade. Há sim atividade mas o que está acontecendo é que, pelo fenômeno da tecnologia, das redes sociais, nós estamos perdendo público. Não temos praticamente mais público e temos que fomentar isso, criar mais, divulgar mais, estimular mais para formar novos públicos e novas plateias. Nós perdemos plateia ao longo dos anos.

O senhor acha então que a Internet está concorrendo com o movimento cultural?

Contribui sim. As redes sociais contribuem para nos tirar plateias. A Internet, como fenômeno, contribui tanto para o bem como para o mal. Mas isso também é reflexo de que os espaços ficaram muito tempo fechados porque não havia atividades tampouco espetáculos.

E o que temos hoje?

Temos uma série de coisas. Chorinho no cinema, um projeto musical maravilhoso realizado todas as quinta-feira no Cine Teatro Recreio e várias outras atividades como a exibição de bons filmes.

Esta diminuição de plateias em determinados espetáculos não tem a ver com o valor dos ingressos? As pessoas ás vezes não têm dinheiro para comprar comida como vão poder consumir cultura?

Isso intimida um pouco, mas eu acho que a grande questão hoje é que as pessoas andam muito assustadas pela violência das ruas, mas também porque, os últimos tempos, perdemos a capacidade de criar e de aproximar o público dos espetáculos. Perdemos essa capacidade sim e temos que voltar a investir nisso para atrair novamente. O fato é que se houver boas atrações, temos plateia assegurada. Um exemplo foram os dois últimos filmes que exibimos, entre eles o renomado “Bacurau”, cujas sessões foram sempre de casas lotadas. Isso nos mostrou que se tivermos bons filmes, temos espectadores. Mas é fato que precisamos divulgar mais, ter mais apoios.

Qual é a principal dificuldade que o senhor está enfrentando à frente da FEM ou tudo está como o céu de brigadeiro?

Nem tanto ao mar nem tanto a Terra. Há dificuldades sim. Uma delas é esta partidarização do Estado, esta divisão política e ideológica que chega até a classe artística. O que estou tentando é fazer um pouco disso pelo inverso, democratizando, dialogando e entendendo que os espaços da cultura eles não nos pertencem. A FEM não vai privilegiar esse ou aquele artista, A ou B. Vamos abrir espaços para todos e ouvir toda a classe artística. Estamos abertos a isso. O Estado é maior que os partidos, maior do que os governos, que passam e o Estado fica. O que queremos é um movimento cultural pungente, efervescente, com espaços ocupados, com museus sendo visitados, com bibliotecas ocupadas.

Há algum projeto para recuperação, por exemplo, do Museu da Borracha, outro que também ter sido abandonado?

Abandonado nada. Está funcionando a todo vapor e posso dizer que está lindo. É claro que é necessário alguma melhoria, estamos trabalhando. O Casarão está funcionando, já temos recursos para recuperar o Teatro Plácido de Castro, como anunciei, a Biblioteca da Floresta já temos recursos para sua recuperação e, em Cruzeiro do Sul, para o Teatro dos Nauas, que agora ganhou o nome do músico Alberto Loro, recém-falecido, também vai passar por reformas e estamos nos preparando para intervenções no Memorial José Augusto e no Teatro José de Alencar. Nós estamos trabalhando. A FEM passou quatro anos distante de sua sede, atendendo na Usina de Artes, no Distrito Industrial. Hoje estamos de volta à sede e, para isso, tivemos que remover o entulho, o lixo, que era, aliás, a meu ver, reflexo de como a cultura era tratada em governos passados e que se diziam, ironicamente, egressos do movimento cultural do nosso Estado. E isso não era responsabilidade dos artistas. A culpa era de quem governava tratando a cultura como algo descartável, de última categoria. Nossa missão é fazer diferente.

Sair da versão mobile